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4º Domingo da Páscoa – Domingo do Bom Pastor

   Devemos compreender a presente parábola dentro do quadro político-social e econômico de Israel na época de Nosso Senhor, o que corresponde a uma realidade bem diferente da civilização industrial e globalizada em que vivemos. O pastoreio ― do qual poucos terão uma noção exata em nossos dias ― constituiu uma das principais atividades do povo eleito no Antigo Testamento, tendo penetrado profundamente na psicologia, na cultura e nos costumes judaicos. Por conseguinte, as imagens tiradas do cotidiano pastoril eram muito acessíveis aos ouvintes do Divino Mestre. Ele as empregou para referir-Se a algo tão elevado que é impossível de ser traduzido a não ser por símbolos: Deus feito Homem cuida com toda a perfeição de cada um de nós, como de uma ovelha muito querida. Nosso Senhor Jesus Cristo Se sente representado por um Pastor ideal, zeloso e dedicado. Em consequência, a figura heroica do pastor adquiriu um cunho sagrado e, com o  tempo, passou a adornar paredes de catacumbas, objetos litúrgicos, túmulos, monumentos sacros, entre outros, como designação corrente d’Aquele que veio ao mundo para salvar suas ovelhas.

Naquele tempo, disse Jesus:  “Em verdade, em verdade vos digo, quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante”.

   Muitas vezes os pastores tinham de arriscar a própria vida para defender as ovelhas, pois, além de não existirem armas eficazes como as atuais, em geral eles eram pessoas pobres, dispondo apenas de um cajado para enfrentar os lobos e os ladrões.

   Tão frequentes eram os assaltos aos rebanhos, que os pastores costumavam se congregar para terem maior segurança e, à noite, recolhiam todas as ovelhas num grande redil. Um deles ficava de vigília, à entrada, e se revezavam ao longo das horas. Esta era a única passagem para entrar e sair do aprisco, sendo usada tanto pelos animais quanto pelos donos.

   Os ladrões, entretanto, nunca transpunham a porta para realizar seus intentos, mas faziam um rombo na cerca, por onde penetravam e levavam as ovelhas.

“Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas. A esse o porteiro abre, e as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome e as conduz para fora.  E, depois de fazer sair todas as que são suas, caminha à sua frente, e as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz.  Mas não seguem um estranho, antes fogem dele, porque não conhecem a voz dos estranhos”. 

   A situação descrita por Nosso Senhor nestes versículos ocorria a cada manhã, quando o pastor ia buscar os animais no redil. A tal ponto se criava uma como que intimidade entre o pastor e suas ovelhas, que estas adquiriam certo instinto pelo qual o reconheciam com precisão e, saindo do meio das outras, se colocavam diante dele, que as conduzia para fora. Reunido todo o rebanho, iniciava-se a marcha rumo aos campos, com o pastor sempre à frente, para fazer face aos que pretendessem assaltá-lo.

Jesus contou-lhes esta parábola, mas eles não entenderam o que Ele queria dizer.

   Quem ouvia esta pregação de Nosso Senhor? Os fariseus, que não queriam admitir o recente milagre da cura de um cego de nascença (cf. Jo 9, 1-41). Contudo, para entendê-la era preciso ter fé e o coração aberto à ação do Espírito Santo, o que faltava aos fariseus. Como eram “guias espirituais de Israel, não podiam suspeitar que eles mesmos fossem ‘assaltantes’ espirituais do rebanho”.

Então Jesus continuou: “Em verdade, em verdade vos digo, Eu sou a Porta das ovelhas”.

   Embora a figura do pastor seja a mais conhecida desta parábola, Jesus primeiro Se apresenta como Porta do redil. Com o pecado original o Céu se fechou para toda a humanidade e ninguém entraria jamais nele se não nos tivesse sido outra vezaberto por Nosso Senhor Jesus Cristo, o Cordeiro imolado, o Bom Pastor e a Porta do redil, nossa Páscoa, ou seja, passagem deste mundo para a bem-aventurança. Só aqueles que O aceitarem habitarão nessa sublime morada, porque Ele é o caminho seguro para atingir a perfeição. Sem Ele não há santidade, sem Ele não há salvação. 

“Todos aqueles que vieram antes de Mim são ladrões e assaltantes, mas as ovelhas não os escutaram”.

   É possível que também nós nos deparemos com quem se diga pastor, mas na realidade não o seja. São mercenários gananciosos, que vivem à busca de dinheiro, mais preocupados com sua subsistência e com o acúmulo de riqueza do que com o bem das almas. Cabe- nos rezar para estarmos concernidos no exemplo das ovelhas que são dóceis à voz do pastor e não escutam os bandidos. Permaneçamos sempre atentos para saber o que a graça quer de nós, procuremos afastar-nos dos perigos e nunca nos desgarremos da grei de Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Eu sou a Porta. Quem entrar por Mim, será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem”.

   Em sentido contrário ao apontado no versículo anterior, o Divino Mestre Se apresenta como a Porta que dá acesso à pastagem, porque é Ele quem nos leva a robustecer o senso do ser, o senso moral que o pecado enfraquece.

“O ladrão só vem para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”.

   Ainda em linguagem parabólica, Ele indica o pecado daqueles que desviam os outros da Religião verdadeira: matam as almas, afastando-as de Nosso Senhor, que é a vida. E a missão d’Ele, ao contrário, é dar aos homens essa vida, Ele a introduz em nossa alma no Batismo e a confirma quando recebemos a Crisma.

   Se Deus põe à nossa disposição essa vida com tal generosidade, basta pedir que Ele no-la dará. Ele possui tudo o que nós precisamos! Não podemos ter horizontes estreitos, ser medíocres na oração, mas devemos ser pessoas de grandes desejos, que imploram coisas ousadas na linha da perfeição. E como todos somos chamados à santidade, se rezarmos com decisão e energia, por meio da Santíssima Virgem, é certo que Ele nos atenderá.

   É possível que nosso exame de consciência nos acuse de alguma vez termos aderido aos ladrões. Lembremo-nos, então, de que Jesus ama tanto as suas ovelhas que Ele deseja dar-lhes a vida, apesar de miseráveis

   A principal lição a ser guardada deste 4º Domingo da Páscoa é que Jesus tem por nós um carinho que suplanta todos os afetos existentes na face da Terra. Ele é tão supremamente nosso Pastor que escolheu sofrer os tormentos do Calvário para nos salvar. Sinal de que nos ama até um limite inimaginável! Por isso, tenhamos total confiança n’Ele ao nos aproximarmos da Confissão, certos de que Ele perdoará nossos pecados, se estivermos arrependidos. Mas, sobretudo, saibamos buscá-Lo na Eucaristia, onde Ele Se oferece em Corpo, Sangue, Alma e Divindade e nos prepara para recebermos a vida em plenitude. Isto se dará quando passarmos pela Porta do redil e adentrarmos no Céu, onde veremos a Deus face a face. Ali estaremos na alegria do Pai, do Filho e do Espírito Santo, numa gloriosa participação nessa família, que é a Santíssima Trindade, junto com Nossa Senhora, os Anjos e os Bem-aventurados.

Obra consultada:  DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

 

 

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3º Domingo da Páscoa

Naquele mesmo dia, o primeiro da semana, dois dos discípulos de Jesus iam para um povoado, chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém. Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido.

   Pelo seu estilo e delicadeza de narração, este é um dos mais belos relatos do terceiro Evangelho.Quanto à cidadezinha de Emaús, há uma dezena de hipóteses sobre sua real localização, e não se têm elementos para saber qual a verdadeira. Retenhamos apenas a distância de 11 km.

   Alguns Padres da Igreja levantam a hipótese de ser o próprio São Lucas um deles, e assim se entenderia melhor o motivo pelo qual ele não quis mencionar o nome do segundo discípulo.

Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus Se aproximou e começou a caminhar com eles.

   O Divino Mestre havia prometido, em vida, estar presente quando dois ou mais estivessem reunidos em seu nome (cf. Mt 18, 20), eis aqui o cumprimento de suas palavras. Foi a conversa entre ambos o fator que atraiu o Redentor a Se agregar a eles.

Os discípulos, porém, estavam como que cegos, e não O reconheceram.

   “Alguns autores pensam que uma ação sobrenatural era que lhes impedia reconhecer Cristo. Mas a frase do Evangelho não exige que tenha se dado uma ação desse gênero. Aconteceu simplesmente que Cristo ressuscitado apareceu-lhes em Corpo glorioso, sob uma forma não mais comum e corrente”. Ou então, segundo o comentário de Teófilo: “Apesar de ser o mesmo Corpo que havia padecido, já não era visível para todos, senão unicamente para aqueles que Ele quisesse que O vissem; e para que não duvidassem que doravante já não viveria entre os homens, porque seu modo de vida depois da Ressurreição já não era humano, mas antes divino, uma pré-figura da futura ressurreição, na qual viveremos como Anjos e filhos de Deus”.

Então Jesus perguntou: “O que ides conversando pelo caminho?” Eles pararam, com o rosto triste…

   Ele conheceu desde toda a eternidade não só aqueles dois discípulos, como também o recôndito de suas almas e até mesmo o conteúdo da conversa de ambos; por isso, Ele pergunta apenas para dar início ao diálogo e ter oportunidade de mais diretamente animá-los.

   Quantas vezes em nossa vida, não terá Jesus Se aproximado de nós para nos reanimar!…

…e um deles, chamado Cléofas, Lhe disse: “Tu és o único peregrino em Jerusalém que não sabe o que lá aconteceu nestes últimos dias?”

   Era de fato incompreensível que um judeu vindo de outras províncias não se inteirasse, ao passar por Jerusalém, dos últimos grandes acontecimentos ali sucedidos. A ressurreição de Lázaro, a expulsão dos vendilhões do Templo, um número incontável de milagres, as arrebatadoras pregações de Jesus e, sobretudo, sua prisão, condenação e Crucifixão, o escurecimento do céu, o tremor da terra, o véu do Templo cindido, o passeio dos justos que haviam saído de seus túmulos — esses eram fatos suficientes para convulsionar a opinião pública. Não havia outro tema para se considerar senão esse, daí a perplexidade manifestada por Cléofas.

Ele perguntou: “O que foi?” Os discípulos responderam: “O que aconteceu com Jesus, o Nazareno, que foi um Profeta poderoso em obras e em palavras, diante de Deus e diante de todo o povo.

   Segundo alguns autores, esta resposta tem sua origem na falta de fé dos dois discípulos, como também no medo de serem presos. Não poderia o forasteiro se escandalizar ouvindo a proclamação da divindade de Jesus?

“Nossos sumos sacerdotes e nossos chefes O entregaram para ser condenado à morte e O crucificaram”.

   Eles narram os fatos com o coração nos lábios e, apesar de extremamente chocados com as atitudes das autoridades religiosas e civis, em nenhum momento manifestam desrespeito ou revolta contra as mesmas. Era um dos resultados obtidos pela ação apostólica de Jesus. O possessivo “nossos”, na voz desses discípulos, demonstra claramente a disposição de submissão e até de veneração face aos detentores do poder. Eles não se separam, e menos ainda injuriam. Essa sempre foi a nota distintiva do verdadeiro Cristianismo.

“Nós esperávamos que Ele fosse libertar Israel, mas, apesar de tudo isso, já faz três dias que todas estas coisas aconteceram!”

   O verbo esperar, empregado no passado, dá bem ideia da decepção na qual se encontravam ambos. Suas atenções estavam concentradas, sobretudo, na possível libertação do domínio dos romanos. Contudo, se bem estivessem com a virtude da fé um tanto abalada, restava-lhes ainda uma esperança: era a promessa proferida por Jesus em várias ocasiões sobre sua Ressurreição ao terceiro dia.

“É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos deram um susto. Elas foram de madrugada ao túmulo e não encontraram o Corpo d’Ele. Então voltaram, dizendo que tinham visto Anjos e que estes afirmaram que Jesus está vivo. Alguns dos nossos foram ao túmulo e encontraram as coisas como as mulheres tinham dito. A Ele, porém, ninguém O viu”.

   Segundo os cânones do pensamento humano, com a trágica Morte do Divino Mestre, todas as esperanças haviam terminado, por mais que as melhores testemunhas afirmassem ter desaparecido seu Corpo. Mas, a prova de sua Ressurreição ainda não se havia consumado oficialmente. Quais os elementos para crerem? Só as palavras dos profetas e do próprio Jesus? Sendo afirmações e promessas feitas pela Verdade Absoluta, era preciso admiti-las como reais.

Então Jesus lhes disse: “Como sois sem inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas falaram! Será que Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória?”

   Sim, era-lhes necessário crer na Escritura, como São Pedro diria mais tarde: “Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação  pessoal. Porque jamais uma profecia foi proferida por efeito de uma vontade humana. Homens inspirados pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus” (II Pd 1, 20-21). Por isso, mais vale crer no testemunho dos profetas do que em nossos sentidos. Aqueles não falham, estes, porém, não raras vezes nos enganam. Para crer, não lhes era indispensável ter acompanhado ao túmulo as Santas Mulheres, nem Pedro e João; bastava-lhes recordarem as assertivas das Escrituras sobre a Ressurreição, tanto mais que as da Paixão já se haviam cumprido tais quais.

E, começando por Moisés e passando pelos profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito d’Ele.

   Que grande privilégio o daqueles dois! Decerto, o Divino Mestre deve ter-lhes mostrado, através de luminosas palavras e de especiais graças, o quanto era errôneo o conceito unânime no povo eleito a respeito de um Messias triunfante, restaurador de seu poder político-social e instaurador de uma influente e prestigiosa supremacia sobre as outras nações. A Escritura Lhe serviu de argumento irrefutável para os objetivos da formação que desejava dar-lhes.

Quando chegaram perto do povoado para onde iam, Jesus fez de conta que ia mais adiante. Eles, porém, insistiram com Jesus, dizendo: “Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!”Jesus entrou para ficar com eles.

   A Delicadeza e a Didática em substância se unem nesse gesto do Salvador ao fazer de conta que ia adiante. Desta forma, incentiva- -os não só a convidá-Lo a permanecer com eles, como também a conferir à sua companhia o devido valor. Eles O convidam e até insistem, apresentando como argumento a hora tardia. Exemplo para nós: quando rezamos, trata-se de usar de pertinácia, pois, dessa forma, “Jesus entrará para ficar conosco”. Caso contrário, Ele seguirá adiante.

Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o,partiu-o, e lhes distribuía. Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu dafrente deles.

   Terá Jesus, nessa hora, operado a transubstanciação? Eis uma questão muito debatida nos séculos XVI e XVII, entre duas correntes teológicas. Uma conclusão clara a esse respeito ainda está por se fazer. Entretanto, por mais que não se tivesse dado a Consagração Eucarística, estava ela ali figurada. E é indiscutível ser esse Sacramento fundamental para nos fortalecer  a fé e fazê-la crescer, sobretudo no tocante ao mysterium fidei que enfeixa a Paixão e a Ressurreição do Redentor. A Eucaristia nos dá a vida sobrenatural, que tem seu fundamento na fé. Crer na Ressurreição de Cristo é absolutamente necessário para nossasalvação, e sem essa crença é impossível nosso próprio progresso na vida espiritual.

Então um disse ao outro: “Não estava ardendo o nosso coração quando Ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?”  Naquela mesma hora, eles se levantaram e voltaram para Jerusalém onde encontraram os Onze reunidos com os outros. E estes confirmaram: “Realmente, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!” Então os dois contaram o que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão. 

   Os versículos finais nos retratam com muita viveza e piedade os efeitos dessa primeira aparição de Jesus a dois fiéis da Igreja nascente, sendo especialmente digno de nota o testemunho da ação da graça mística nas almas de ambos, enquanto Jesus  lhes discorria sobre as Escrituras.

   É tal o apreço de Deus por sua própria Palavra, que Ele sempre faz acompanhar de generosos auxílios o estudo, interesse e piedade aplicados ao conhecimento amoroso dos textos sagrados.

   Nos versículos logo a seguir, São Lucas narra a aparição de Jesus aos Onze em Jerusalém. Novamente reluz a infinita sabedoriae diplomacia do Divino Mestre, ao tratar os Apóstolos com insuperável carinho e grandeza, ao mesmo tempo. Só Ele consegue harmonizar virtudes tão opostas; e, apesar de não ser acrescentada ao Evangelho deste domingo, lucraremos muito em relê-la.

Obra consultada:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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2º Domingo da Páscoa

Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou…

   O Evangelho se abre com um episódio ocorrido no próprio dia da Ressurreição. Ao cair da tarde, ainda os encontramos reunidos no Cenáculo. Temerosos de que os judeus viessem à sua procura e os levassem paraa prisão, fecharam bem todas as portas do local. Não obstante, enquanto conversavam, “Jesus entrou”.

   Neste caso, o medo que se apoderou dos Apóstolos foi útil, e até providencial, para lhes oferecer uma prova irrefutável da Ressurreição de Jesus em Corpo glorioso, pois se a casa estivesse aberta eles imaginariam que o Mestre havia entrado pelas vias normais. De fato, esse ato de transpor barreiras físicas decorre de uma das propriedades dos corpos gloriosos, a sutileza, pela qual os Bem-aventurados são capazes de atravessar outros corpos sempre que o queiram.

…e, pondo-Se no meio deles, disse: “A paz esteja convosco”.

   Esta passagem traz um aviso, um conselho e um convite para nós: sempre que procuramos a companhia de Jesus — seja no Santíssimo Sacramento, seja numa cerimônia litúrgica, seja em qualquer circunstância em que elevemos nossa alma até Ele — devemos estar em paz, pois só assim nos beneficiaremos inteiramente de sua presença. Isto é, precisamos aquietar as paixões, eliminar os apegos e as aflições com as coisas concretas e colocarmo-nos em atitude contemplativa.

Depois dessas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor.

   Compreende-se que São João faça constar o quanto os discípulos se alegraram com isso. Haviam-se dissipado todas as inquietações, graças à paz infundida por Jesus, sem a qual não teriam desfrutado o imenso dom que Ele lhes oferecia ao manifestar-Se.

   Vemos ainda acentuada a necessidade de nunca abandonarmos o espírito contemplativo — quer estejamos em meio às atividades, quer enfrentando um drama, quer nas ocasiões de júbilo —, bem como a importância de vigiarmos sempre para impedir que nossas más inclinações nos dominem, roubando-nos a paz. No temor, na dor ou na confusão, na euforia, no entusiasmo ou na consolação, nunca devemos perder a paz! Nisto consiste o estado de santidade.

Novamente, Jesus disse: “A paz esteja convosco. Como o Pai Me enviou, também Eu vos envio”.

   Com que objetivo o Pai enviou Jesus ao mundo? Para salvar os homens, revelando, ensinando, perdoando e santificando, e é esta a missão que o Redentor transfere aos Apóstolos reunidos em plenário, já no primeiro encontro posterior à sua Ressurreição. Tal é a função da Igreja, de modo particular dos que são chamados ao ministério sacerdotal, mas também de todo apóstolo: quanto lhes seja possível, têm obrigação de instruir nas verdades da Fé e encaminhar para o perdão, promovendo a santificação das almas pelo exemplo e pela palavra.

E, depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos”.

   O Filho de Deus lhes conferia o poder de perdoar os pecados, deixando a seu encargo “o principado do supremo juízo, para que, fazendo as vezes de Deus, a uns retenham os pecados e os perdoem a outros”. De fato, sem a assistência do Espírito Santo não é possível exercer missão tão elevada, pois o confessor deve tratar cada alma tal como Jesus o faria, sabendo discernir as disposições do penitente, dar-lhe o conselho adequado e estimulá-lo ao sincero arrependimento de suas faltas.

Tomé, chamado Dídimo, que era um dos Doze, não estava com eles quando Jesus veio. Os outros discípulos contaramlhe depois: “Vimos o Senhor!” Mas Tomé disse-lhes: “Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei”.

   Tomé, ausente do Cenáculo quando Jesus ali estivera junto aos discípulos,não havia se beneficiado do convívio com o Senhor, e, ao ouvir a notícia, recalcitrou em não acreditar, declarando que só se convenceria se comprovasse por si mesmo a Ressurreição.

   Deus permitiu isso também para que os outros Apóstolos, já trabalhados por Nosso Senhor, tivessem um choque com atitudetão incrédula, e ficasse patente para eles a diferença entre quem ouvira duas vezes “A paz esteja convosco” e quem não fora objeto deste favor. Tomé vinha com a agitação da atividade, com as aflições de quem está alheio à contemplação e, em consequência, fraquejou na fé.

Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa, e Tomé estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-Se no meio deles e disse: “A paz esteja convosco”.

  Apesar de todas as graças recebidas na ocasião anterior, os Apóstolos ficam mais uma vez amedrontados. E é compreensível, pois, se a aparição de um Anjo incute temor, como não causaria a de um Deus feito Homem, ostentando em seu Corpo marcas de glória? Por isso Nosso Senhor lhes deseja outra vez a paz. Pazsobrenatural que Ele próprio comunica à alma de cada um.

Depois disse a Tomé: “Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E nãosejas incrédulo, mas fiel”. Tomé respondeu: “Meu Senhor e meu Deus!”

   Assim como fizera aos outros, Jesus apresentou as mãos a Tomé e afastou a túnica, de modo a mostrar a chaga do lado, para que o Apóstolo incrédulo também se tornasse testemunha da Ressurreição. O felix culpa! Ao tocar nas sagradas chagas, São Tomé deu-nos a prova de que era realmente o Corpo do Divino Mestre, curando “em nós as chagas de nossa incredulidade. De maneira que a incredulidade de Tomé foi mais proveitosa para nossa fé do que a fé dos discípulos que acreditaram, porque, decidindo aquele apalpar para crer, nossa alma se afirma na fé, descartando toda dúvida”

   Há ainda nesta passagem outro aspecto que merece nossaatenção: tudo isto aconteceu depois de São Tomé receber a paz de Nosso Senhor. Do contrário, embora ele pusesse a mão na chaga de nada aproveitaria, porque é na paz que a fé, a esperança, a caridade — enfim, todas as virtudes — se desenvolvem.

Jesus lhe disse: “Acreditaste, por que Me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!”

   Este versículo ressalta o contraste entre o caráter divino da Igreja e o seu elemento humano. Este último é incrédulo e, no fundo, infiel, pois é constituído de pessoas concebidas no pecado original e que, portanto, têm debilidades. Mas, enquanto instituição erigida por Cristo para santificar e salvar, ela é impecável, e nenhuma imperfeição humana atinge sua divindade.

Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que,crendo, tenhais a vida em seu nome.

   Impossível seria narrar tudo o que o Divino Mestre fez, pois a vida d’Ele foi um sinal permanente. Por esta razão, o Evangelista selecionou os episódios mais adequados à finalidade que tinha em vista, dentre os quais os dois encontros de Jesus com os discípulos, mencionados neste Evangelho. Com efeito, eles nos levam a concluir facilmente que Nosso Senhor Jesus Cristo é o Filho de Deus Vivo e que n’Ele devemos ver mais o lado divino do que o humano.

   Tenhamos sempre presente que, se não nos coube a graça de conviver com Nosso Senhor, nem ver e tocar suas divinas chagas, nos foi reservada, conforme a afirmação do Divino Mestre, uma bem-aventurança maior do que a deles: crer na Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Bem se poderiam aplicar a nós as palavras de São Pedro na segunda leitura (I Pd 1, 3-9) deste domingo: “Sem ter visto o Senhor, vós O amais. Sem O ver ainda, n’Ele acreditais. Isso será para vós fonte de alegria indizível e gloriosa, pois obtereis aquilo em que acreditais: a vossa salvação” (I Pd 1, 8-9)

Obra consultada: DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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Sexta-Feira Santa

Uma meditação para o dia

 “Diz a sua Mãe: Mulher eis aí teu filho. Depois diz ao discípulo: Eis aí tua Mãe” (Jo. 19, 26 e 27).

         Consideremos como Jesus moribundo, volvendo-Se para sua Mãe, que estava ao pé da Cruz, e indicando-Lhe pelo olhar o discípulo predileto, lhe disse: Mulher eis aí teu filho; e depois acrescentou, dirigindo-se ao discípulo: Eis aí tua Mãe. E assim Maria foi constituída Mãe de todos os cristãos, e nós fomos feitos seus filhos. Ponhamos, portanto na Santíssima Virgem toda a nossa confiança, e em todas as necessidades recorramos a Ela por socorro. Mas ao mesmo tempo provemos pelas nossas obras que somos filhos dignos de seu amor.

         Nenhuma mãe suporta ver seu filho sofrer; o amor não lhes permite assistirem a tal espetáculo, verem-nos sofrer sem que lhes possam trazer alívio. A divina Mãe, porém, quanto mais o Filho estava próximo a morrer, tanto mais se aproximava da Cruz. E assim como o Filho sacrificava a vida pela salvação dos homens, Ela oferecia a sua dor, compartilhando com perfeita resignação todos os seus sofrimentos e opróbrios. Pelo que o Senhor volvendo-se para Ela, e indicando-Lhe pelo olhar São João, que estava ao lado d’Ela, disse: “Mulher, eis aí teu filho”.

         Mas porque é que Jesus a chamou Mulher e não Mãe? Pode-se dizer que a chamou Mulher, porque estava já próximo à morte e assim Lhe falou para se despedir, como se dissesse: Mulher, em breve estarei morto, de modo que ficarás sem filho na Terra. Deixo-Te, portanto, a João, que Te servirá e amará com amor de filho. A razão, porém, mais íntima, pela qual Jesus chamou Maria Mulher e não Mãe é esta: quis Jesus assim patentear que é ela a grande Mulher predita no livro Gênesis, a qual havia de esmagar a cabeça do orgulhoso Lúcifer.

         Disse Deus à serpente:– “Porei inimizade entre a tua descendência e a da Mulher[1]”. Isso indicava que, depois da perdição dos homens em consequência do pecado, e apesar da obra da Redenção, haveria no mundo duas famílias e duas descendências. Pela descendência do demônio é significada a família dos pecadores, pela descendência de Maria é significada a família santa que abrange todos os justos com seu Chefe, Jesus Cristo. De modo que a Virgem foi destinada a ser Mãe tanto da Cabeça quanto dos membros, que são os fiéis.

         Para compreendermos melhor ainda que Maria é Mãe de todo bom cristão,  já o Evangelista não quis chamar São João pelo seu nome próprio, mas pelo de discípulo; e logo em seguida acrescenta que o Senhor, volvendo-Se para o discípulo, lhe disse: “Eis aí a tua Mãe” . Por esta razão escreve Dionísio o Cartusiano, que a divina Mãe, pelas suas orações e pelos merecimentos que adquiriu, especialmente pela assistência à morte de Jesus Cristo, alcançou para nós o podermos participar dos merecimentos da Paixão do Redentor. Ponhamos, pois, na Santíssima Virgem toda a esperança e em toda a necessidade recorramos a Ela, dizendo: “Mostrai que sois minha Mãe”. Mas tratemos ao mesmo tempo de pelas nossas obras nos mostrar-nos seus dignos filhos.

         Ó Rainha de dores, são demasiado caras a uma mãe as recordações de um filho querido que morre, e nunca mais lhe podem sair da memória. Lembrai-Vos, pois, que na pessoa de São João vosso Filho me Vos deu por filho, a mim que sou um pecador. Pelo amor que votais a Jesus, tende compaixão de mim. Não Vos peço bens terrestres. Vejo que vosso Filho morre por meu amor, de morte tão dolorosa; vejo que também Vós, minha Mãe inocente, padeceis por mim tantas dores; e vejo que eu, pecador miserável e réu do inferno pelos meus pecados, não tenho sofrido nada por vosso amor. Alguma coisa quero sofrer, antes que morra. É esta a graça que Vos peço, e com São Boaventura Vos digo que, se Vos ofendi, justo é que eu sofra por castigo; e, se Vos servi, é justo que eu sofra em recompensa.

         Ó Maria, alcançai-me uma grande devoção à Paixão de vosso Filho e uma lembrança contínua da mesma. Pela aflição que padecestes ao vê-Lo expirar na Cruz, obtende-me uma boa morte. Minha Rainha, assisti-me neste último momento, e fazei com que eu morra dizendo: “Jesus, Maria, José, eu Vos dou meu coração e minha alma. Jesus, Maria, José, assisti-me na minha última agonia. Jesus, Maria, José, expire eu em paz na vossa companhia”.

——–

Obra Consultada: “Meditações para todos os dias do ano tiradas das obras de Santo Afonso Maria de Ligório, Bispo e Doutor da Igreja”.  Pe. Thiago Maria Cristini, C. SS. R.,  Herder e Cia., tomo III, págs.168-170, Friburgo em Brisgau, Alemanha, 1921.


[1]  Gen. 3, 15.

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