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Domingo da Sagrada Família

   A Santa Igreja reserva o domingo posterior ao Natal para cultuar e festejar a Sagrada Família, convidando-nos a refletir sobre o valor e o verdadeiro sentido da instituição familiar. Ela é a célula-mãe, o fundamento da sociedade, e se hoje assistimos a uma tremenda crise moral na humanidade, isso se deve em certa medida à desagregação da família. Abalada esta, o resto da sociedade não se sustenta.

Depois que os Magos partiram…

   Os Magos, vindos do Oriente, estavam desejosos de encontrar o Salvador prometido e perguntaram a Herodes onde estava o Rei dos judeus recém-nascido.

   O que fez, então, Herodes? Enganou os Magos, fingindo-se uma pessoa piedosa que, como eles, esperava a vinda do Messias, e pediu-lhes que fossem procurar o Menino para, depois, também ir adorá-Lo. Na realidade, seu intuito era aplicar o método mais usual daquela época, o assassinato.

Como transcorressem os dias e os Magos não retornassem a Jerusalém conforme combinado, baseando-se no oráculo de Miqueias sobre o nascimento do Messias em Belém que os príncipes dos sacerdotes lhe tinham dado a conhecer, determinou exterminar todas as crianças dessa cidade e das redondezas, de idade inferior a dois anos.

   Estamos diante de uma situação singular: o Príncipe da Paz, o Esperado das Nações apenas nasce e já suscita contra Si o ódio do demônio, que incute um pânico sem fundamento em Herodes, instigando-o a matá-Lo.

…o Anjo do Senhor apareceu em sonho a José…

   Por que o Anjo apareceu a São José e não a Maria Santíssima? Pois quem tinha uma relação direta com o Menino Deus era sua Mãe, enquanto São José era tão somente o pai adotivo, e, do ponto de vista sobrenatural, o menor na Sagrada Família. Entretanto, como chefe da casa, a ele cabiam as decisões, e por tal motivo foi o escolhido para receber o aviso angélico.

…e lhe disse: “Levanta-te, pega o Menino e sua Mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise! Porque Herodes vai procurar o Menino para matá-Lo”. José levantou-se de noite, pegou o Menino e sua Mãe…

   As palavras do Anjo são muito precisas. Ele podia ter dito: “Pega o Menino e tua esposa”. Não obstante, como São José não é o pai, “não chama seus nem a mulher nem o Menino”, destacando seu papel de guardião de ambos, missão aceita com humildade pelo Santo Patriarca. Flexível à vontade de Deus, São José com todo o respeito despertou Maria de um sono angélico para empreenderem logo a viagem, pois o texto do Evangelho diz que “levantou-se de noite”.

…e partiu para o Egito.

   São Leão Magno entrevê um belo significado: “ele retornava assim ao antigo berço do povo hebreu, e aí exercia a autoridade do verdadeiro José, usando de um poder e de uma previdência maior que a dele, pois vinha libertar os corações dos egípcios desta fome, mais terrível que toda penúria de que padeciam pela ausência da verdade”.

   De fato, tendo outrora castigado o Egito para libertar Israel das mãos do Faraó, na sua infinita compaixão quis Deus contrabalançar o furor de sua cólera dando a esta nação, durante algum tempo, o dom imenso da presença de Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora e São José para santificá-la e lhe dar uma compensação sobrenatural pelos castigos recebidos no passado.

 

Ali ficou até a morte de Herodes, para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: “Do Egito chamei o meu Filho”. Quando Herodes morreu…

   Conta-se que o imperador Augusto, horrorizado com tanta crueldade, chegou a comentar que preferiria ser um porco de Herodes a ser seu filho, pois como o tirano não se alimentava deste animal ele estaria tranquilo, enquanto se fosse filho corria o risco de ser executado.

   A enfermidade que o levou à morte provocou-lhe dores atrozes, violentas convulsões e uma terrível gangrena em suas entranhas. Os vermes que o devoravam eram visíveis e o odor exalado insuportável.

  Herodes foi um homem que alcançou tudo quanto seus delírios de cobiça lhe exigiam: poder, honras, riquezas, prazeres. Não teve, porém, o afeto sincero de ninguém, nem mesmo da própria família, que ele submergiu em sangue. Não conheceu a paz interior, nem gozou do favor inestimável das bênçãos do Céu. Seus desregramentos afastaram-no da felicidade e da alegria concedidas a quem segue a Lei de Deus.

…o Anjo do Senhor apareceu em sonho a José, no Egito, e lhe disse: “Levanta-te, pega o Menino e sua Mãe, e volta para a terra de Israel; pois aqueles que procuravam matar o Menino já estão mortos”. José levantou-se, pegou o Menino e sua Mãe, e entrou na terra de Israel.

   A flexibilidade incondicional de São José à inspiração divina, mais uma vez, sobressai. O que representava de esforço e de sacrifício sair de sua terra de origem e ir para um país estrangeiro com língua e costumes diferentes, naquele tempo, é incalculável. Como obter meios de subsistência a fim de manter a Sagrada Família? Nada disso nos diz o Evangelho, mas é fácil conjecturar. Quando eles saíram de Belém, o fizeram às pressas, para se pôr a salvo da perseguição de Herodes, sem tempo de preparar convenientemente tão longa viagem.

   Ao receber a ordem de voltar para Israel, São José poderia alegar a situação que já tinha atingido no Egito, onde fora tão difícil se estabelecer no início, e pedir o adiamento do retorno Mas ele não se queixa nem discute com o Anjo: levanta-se e parte sem delongas para a terra natal. Assim deve ser um superior quando ouve a voz da graça: à imitação de São José, obedecer de imediato com toda segurança.

   Mas, quando soube que Arquelau reinava na Judeia, no lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Por isso, depois de receber um aviso em sonho, José retirou-se para a região da Galileia, e foi morar numa cidade chamada Nazaré. Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelos profetas: “Ele será chamado Nazareno”.

   Embora Arquelau não conseguisse superar seu pai em crueldade, empenhou-se em seguir-lhe os passos, deixando também um rastro de sangue em seu curto reinado. Por isso José, inspirado em sonho, partiu para a Galileia, lugar sob outra jurisdição. Tais são os caminhos da nossa existência, atravessados por imprevistos que nos mudam os planos: ora Deus pede uma coisa, ora pede outra. Entretanto, em tudo o que acontece Ele nos dirige com sabedoria e afeto paternal.

   A Igreja nos propõe nesta festa litúrgica o inigualável exemplo da Sagrada Família: São José, obediente, de nada se queixa; Nossa Senhora toma os reveses com inteira cordura e submissão; e o Menino Jesus Se deixa conduzir e governar por ambos, sendo Ele o Criador do Universo. Nós também devemos, portanto, ser flexíveis à vontade de Deus e estar dispostos a aceitar com doçura de coração, com resignação plena e total, os sofrimentos que a Providência exigir ao longo de nossa vida.

   Esta atitude diante da cruz é a raiz da verdadeira felicidade, bem-estar e harmonia familiar, e atrai sobre cada um de nós graças especialíssimas que nos restauram as almas, curando-as das misérias e firmando-as rumo ao Céu. Peçamos à Sagrada Família que, por sua intercessão, floresça nas famílias de toda a Terra a sólida determinação de abraçar sempre mais a via da santidade, da perfeição e da virtude, buscando em primeiro lugar o Reino de Deus e de Maria, na certeza de que, em compensação, o resto virá por acréscimo.

Obras Consultadas

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

 

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33º Domingo do Tempo Comum

Nos aproximamos do fim de mais um ano litúrgico. Em breve a Liturgia se revestirá de roxo para aguardar, na penitência, o nascimento do Redentor. Por esta razão, a Igreja deseja preparar as almas através da Palavra.

Na obra, “O inédito sobre os Evangelhos”, Mons. João Clá Dias – Presidente Geral dos Arautos do Evangelho – inicia seus comentários a respeito deste 33º Domingo do Tempo Comum relatando um fato ocorrido com São Pio X.

Conta-se que São Pio X, durante audiência aos membros de um dos colégios eclesiásticos romanos, perguntou aos jovens estudantes:
–– Quais são as notas distintivas da verdadeira Igreja de Cristo?
— São quatro, Santo Padre: Una, Santa, Católica e Apostólica
–– Não! há mais uma. Ela é também perseguida! Esse é o sinal de sermos verdadeiros discípulos de Jesus Cristo.

A Igreja é perseguida. De fato, sem essa nota não se entende bem a História da Esposa de Cristo, que já começa sob esse signo na mais tenra infância do seu Divino Fundador. Que mal poderia fazer a Herodes aquele Menino, filho de carpinteiro, nascido numa gruta e deitado numa manjedoura? Nenhum. Mas na ímpia tentativa de tirar-Lhe a vida, o tetrarca não hesitou em mandar assassinar crianças inocentes.
Ao longo da vida pública de Jesus, o ódio contra Ele não fez senão crescer, e chegou ao paroxismo quando os fariseus tomaram a decisão de matá-Lo e obtiveram de Pilatos a iníqua sentença de condenação.
Nessa mesma inimizade encontra-se a fonte das investidas sofridas pela Igreja após a subida de Nosso Senhor ao Céu.

Assim, foi movido por ódio furibundo contra os cristãos que Nero deu início, no ano 64, à sangrenta perseguição que haveria de durar, com intermitências, até 313, quando o Imperador Constantino concedeu liberdade à Igreja, pelo Edito de Milão. E ao longo dos séculos subsequentes, a Esposa de Cristo nunca deixou de enfrentar os mais variados ataques — por vezes cruentos — e incessantes oposições, ora abertas, ora solapadas.

Mesmo em nossos dias, este ódio contra aqueles que praticam o bem não deixa de se manifestar em seus múltiplos aspectos.

Naquele tempo, algumas pessoas comentavam a respeito do Templo que era enfeitado com belas pedras e com ofertas votivas.

Ponto de referência máximo do povo judeu, para o Templo se voltavam os corações dos israelitas do mundo inteiro. Entretanto, a julgar pelas palavras ditas a seguir por Nosso Senhor, tudo indica que estavam eles contemplando a casa de Deus com uma visualização meramente naturalista.

Jesus disse: “Vós admirais estas coisas? Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído”.

Os Apóstolos tinham diante de si Alguém que valia muito mais do que o Templo: o Criador, o Redentor, a Sabedoria eterna e encarnada. Ao contemplarem com olhos mundanos aquele prédio, manifestavam-se cegos para Deus, porque detinham-se na admiração da criatura sem se elevar até o Criador; compreendiam o símbolo, mas não o Simbolizado. Esta é a razão da contundente advertência de Nosso Senhor.

Mas eles perguntaram: “Mestre, quando acontecerá isto? E qual vai ser o sinal de que estas coisas estão para acontecer?”

Como observa São Cirilo, os Apóstolos “não perceberam a força de suas palavras e julgavam que Ele falava da consumação dos séculos”. Por isso, Nosso Senhor, “sem deixar de responder à pergunta com clareza suficiente para eles conjecturarem os acontecimentos vaticinados”, falará em dois sentidos: um, a destruição do Templo material; outro, o fim do mundo. Na realidade, o desaparecimento dessa grandiosa construção significava o fim de um mundo: a época da antiga Lei cedia lugar à era da graça.

Jesus respondeu: “Cuidado para não serdes enganados, porque muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu!’; e ainda: ‘O tempo está próximo.’ Não sigais essa gente! Quando ouvirdes falar de guerras e revoluções, não fiqueis apavorados. É preciso que estas coisas aconteçam primeiro, mas não será logo o fim”. E Jesus continuou: “Um povo se levantará contra outro povo, um país atacará outro país. Haverá grandes terremotos, fomes e pestes em muitos lugares; acontecerão coisas pavorosas e grandes sinais serão vistos no céu”.

Ora, sempre que os pecados da humanidade passam de certo limite, Deus intervém manifestando sua cólera e castigando os caprichos e egoísmos dos homens.
Para contemplar a Deus na perspectiva verdadeira, sem distorções nem unilateralismos, é preciso amar n’Ele esses dois aspectos [a Justiça e a Misericórdia]. Considerar a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade morrendo na Cruz para nos redimir, é poderoso estímulo para a nossa piedade. Mas não podemos também deixar de admirar sua severidade, ainda quando ela possa vir a nos atingir.
Porque, como ensina Santo Afonso Maria de Ligório, “não merece a misericórdia de Deus quem se serve dela para ofendê-Lo. A misericórdia é para quem teme a Deus, e não para o que dela se serve com o propósito de não temê-Lo. Aquele que ofende a justiça — diz o Abulense — pode recorrer à misericórdia; mas a quem pode recorrer o que ofende a própria misericórdia?”.

“Antes, porém, que estas coisas aconteçam, sereis presos e perseguidos; sereis entregues às sinagogas e postos na prisão; sereis levados diante de reis e governadores por causa do meu nome”.

Ao anunciar aos Apóstolos as perseguições e sofrimentos que haveriam de enfrentar, Nosso Senhor tinha em vista também instruir os cristãos de todos os tempos, porque inúmeras vezes ao longo da História a proclamação do nome de Jesus Cristo lhes trará como consequência serem injustamente presos, perseguidos ou conduzidos aos tribunais. E isto chegará ao auge nos últimos tempos, pois quanto maior for a decadência moral da humanidade, inelutavelmente mais ódio haverá contra os justos, cuja mera existência já representa muda censura aos maus.

“Esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé”.

Nessas horas de tempestade, suscita a Providência testemunhas da Fé que sejam fachos da Luz de Cristo a rasgar a obscuridade da provação.
Quanto aos acontecimentos do fim do mundo, serão justamente a firmeza na fé e a força impetratória dos fiéis, perante o ódio insaciável dos sequazes do anticristo, que atrairão a intervenção divina, desencadeando o castigo final.

“Fazei o firme propósito de não planejar com antecedência a própria defesa; porque Eu vos darei palavras tão acertadas, que nenhum dos inimigos vos poderá resistir ou rebater”.

Com esta surpreendente afirmação, parece Nosso Senhor convidar seus discípulos à negligência, ao invés de incentivá-los a se prevenirem perante a perspectiva da perseguição. Mas nesta passagem do Evangelho refere-Se o Mestre aos momentos de extrema aflição em que tudo parece perdido. Nessas horas, comenta São Gregório, “é como se o Senhor dissesse a seus discípulos: ‘Não vos atemorizeis. Vós ireis ao combate, mas Eu é que combaterei; vós pronunciareis palavras, mas quem falará sou Eu’”.

“Sereis entregues até mesmo pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos. E eles matarão alguns de vós. Todos vos odiarão por causa do meu nome”.

Até no seio das próprias famílias haverá divisão, multiplicando o sofrimento daqueles que serão entregues por “pais, irmãos, parentes e amigos”. Pois, como ensina São Gregório, “os mais cruéis tormentos para nós são os causados pelas pessoas mais queridas, porque, além da dor corporal, sentimos o carinho perdido”.

“Mas vós não perdereis um só fio de cabelo da vossa cabeça”.

Cada um dos nossos atos, gestos ou atitudes serão consignados no livro da vida. Nenhum ato de virtude ficará sem recompensa, conforme afirma São Beda: “Não cairá um só fio de cabelo da cabeça dos discípulos do Senhor, porque não somente as grandes ações e as palavras dos santos, mas também o menor de seus pensamentos será dignamente premiado”.

“É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida!”

 

Uma vez compenetrados de estarmos de passagem nesta Terra, a caminho da eternidade, todos os males que possamos sofrer tomam outra dimensão. “Quem sabe que é um peregrino neste mundo, independentemente do local onde se encontre corporalmente; quem sabe que tem uma pátria eterna no Céu; quem tem certeza de que ali se encontra a região da vida feliz, a qual aqui é lícito desejar, mas não é possível ter, e arde nesse desejo tão bom, santo e casto — esse vive aqui pacientemente”.
É permanecendo firmes na Fé que ganharemos a verdadeira vida; é só na perspectiva da glória eterna que teremos forças para perseverar na hora das provações. E isto não depende tanto do nosso esforço quanto da graça divina, que devemos pedir sem cessar.

Para ler mais, clique aqui

Obras consultadas:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol VII, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2012

 

 

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Solenidade de Todos os Santos

Santo Agostinho diversas vezes em seus escritos recorda-se do Monte Olimpo. Montanha tão alta que lá não se sente nem ventos, nem nuvens, nem chuvas. Nem mesmo as aves podem lá pousar, porque fica tão alto, que o ar ali é muito puro e subtil, e por isso não se podem lá produzir e sustentar as nuvens que precisam de ar mais denso.

Por esta mesma razão, nem as aves nem os homens podem lá viver, porque, sendo o ar tão rarefeito e leve, não é suficiente para poder respirar. Alguns que conseguiram subir tiveram de levar consigo esponjas molhadas para que, pondo-as no nariz, pudessem adensar o ar, e respirar melhor. Estes alpinistas lá no cimo do monte escreviam certas letras no pó, e no ano seguinte encontravam-nas tão inteiras e bem formadas como as tinham deixado, pois lá não chegavam nem os ventos nem as chuvas.

Pois bem, este é o estado de perfeição a que subiram e chegaram os que possuem uma inteira conformidade com a vontade de Deus. Subiram tão alto e alcançaram tamanha paz, que não há nuvem, nem ventos, nem chuvas que lá cheguem, nem aves de rapina que salteiam nem roubam a paz e alegria de seu coração, são estes os Bem-aventurados de quem Nosso Senhor fala no Evangelho desta Solenidade de Todos os Santos.

Na Solenidade de Todos os Santos a Igreja celebra todos aqueles que já se encontram na plena posse da visão beatífica, inclusive os não canonizados. Sim, alegremo-nos, porque santos são também — no sentido lato do termo — todos os que fazem parte do Corpo Místico de Cristo: não só os que conquistaram a glória celeste, como também os que satisfazem a pena temporal no Purgatório, e os que, ainda na Terra de exílio, vivem na graça de Deus.

 O contraste entre a Antiga e a Nova Lei

Em primeiro lugar, apreciemos o contraste desta cena do Sermão da Montanha com outro importante discurso da História Sagrada: a promulgação da Antiga Lei, no Monte Sinai (cf. Ex 19—23).

No Sinai, foi dado a Moisés um código de leis, com severos castigos para quem o transgredisse; na montanha, Nosso Senhor mostra, com misericórdia sem limites, quais os prêmios e as maravilhas concedidas por Deus a quem pratica a virtude e cumpre a Lei. No Sinai, Moisés representa a Lei, servindo de exemplo por seu zelo em cumprir essa mesma Lei; na montanha, Jesus Cristo é o modelo perfeito da lei da bondade.

Nessa perspectiva de bondade, Jesus proclama as Bem-aventuranças, mostrando a que alturas é capaz de se elevar uma alma pelo florescimento dos dons do Espírito Santo, produzindo atos de virtude heroica. Ser santo, então, significa ser um bem-aventurado no tempo para depois sê-lo na eternidade.

A filiação divina nos confere uma qualidade

Em que consiste, pois, essa bem-aventurança? Na segunda leitura (I Jo 3, 1-3) São João nos dá a resposta: “Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de Deus. E nós realmente o somos” (I Jo 3, 1a). Na verdade, por ocasião do Batismo, embora a natureza humana continue a mesma, com inteligência, vontade e sensibilidade, acrescenta-se em nós uma qualidade: a participação na própria natureza divina, que nos assume por completo. A graça, explica São Boaventura, “é um dom que purifica, ilumina e aperfeiçoa a alma; que a vivifica, a reforma e a consolida; que a eleva, a assimila e a une a Deus, tornando-a aceitável; pelo que semelhante dom justamente chama-se graça, pois nos faz gratos, isto é, graça gratificante”.

Sendo um bem do espírito, não pode ser vista com os olhos materiais, pois estes captam só o que é sensível, mas comprovamos, isto sim, seus efeitos. Santa Catarina de Sena, a quem Nosso Senhor concedera a graça de contemplar o estado das almas, chegou a afirmar a seu confessor: “Meu pai, se vísseis o fascínio de uma alma racional, não duvido que daríeis cem vezes a vida pela sua salvação, porque neste mundo nada há que se lhe possa igualar em beleza”.

Imaginemos um vitral esplendoroso, com uma perfeita combinação de cores, fabricado com vidro da melhor qualidade, contendo até ouro na sua composição. Uma vez posto na janela, se não é iluminado, que valor terá peça tão espetacular? Entretanto, a partir do momento em que os raios de luz sobre ele incidem, brilhará com extraordinários matizes, desdobrando-se em mil reflexos multicoloridos.

Da mesma forma como a luz ilumina o vitral, também a graça confere nova qualidade à alma humana, que é, por assim dizer, submersa na natureza divina.

Uma semente da glória futura

 

Filhos de Deus… “nós o somos! Se o mundo não nos conhece é porque não conheceu o Pai. Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos” (I Jo 3, 1b-2a). De fato, enquanto permanecemos neste mundo, em estado de prova, temos a graça santificante, recebida no Batismo, e as graças atuais, que Deus derrama sobre nós ao longo da nossa existência. Todavia, estamos apenas no começo do caminho, pois, só quando contemplarmos a Deus face a face, esta graça se transformará em glória e chegaremos ao “estado de homem feito, a estatura própria da maturidade de Cristo” (Ef 4, 13).

A ideia da felicidade eterna

Esta é a felicidade absoluta da qual os Santos, já gozam em plenitude na eternidade e com a qual nenhuma consolação desta vida é comparável. Nossa ideia a propósito da felicidade é tão humana, que julgamos, muitas vezes, possuí-la em grau máximo ao obter algo que muito desejamos. A mera inteligência do homem não alcança a compreensão da felicidade do Céu, pois em relação a Deus somos como formigas que, andando pela terra, levantassem a cabeça para olhar o voo de uma águia no céu. A diferença entre uma formiga e uma águia é ridícula perto da infinitude existente entre a razão humana e a inteligência divina. E ainda que, dotados de uma capacidade incomum, passássemos trezentos bilhões de anos estudando, nosso verbo continuaria falho e não encontraríamos termos para nos expressarmos devidamente a respeito de Deus.

Um empréstimo da inteligência divina

Pois bem, em seu infinito amor, Deus quis dar às criaturas inteligentes, Anjos e homens, um empréstimo de sua luz intelectual, o lumen gloriæ. O eminente dominicano padre Santiago Ramírez define o lumen gloriæ como “um hábito intelectual operativo, infuso per se, pelo qual o entendimento criado se faz deiforme e torna-se imediatamente disposto à união inteligível com a própria essência divina, e se torna capaz de realizar o ato da visão beatífica”.

Esse “fazer-se deiforme” significa que quem entra na bem-aventurança e contempla a Deus face a face se torna semelhante a Ele, como afirma São João na continuação de sua Epístola: “Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é” (I Jo 3, 2b). Só no Céu veremos a Nosso Senhor Jesus Cristo de fato, uma vez que enquanto viveu na Terra ninguém O viu tal qual Ele é.

Sigamos o exemplo daqueles que nos precederam na graça e nos esperam na glória!

O homem, ainda quando privado da graça, tem uma apetência de infinito que não descansa enquanto não for saciada pela união com Deus. É o que revela Santo Agostinho, em suas Confissões: “E eis que Tu estavas dentro de mim e eu fora, e fora Te procurava; e, disforme como era, lançava-me sobre as coisas belas que criaste. Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de Ti aquelas coisas que, se não estivessem em Ti, não existiriam”.  Essa felicidade imensa e indescritível, para a qual todos nós somos criados, só a atingiremos seguindo os passos daqueles que nos precederam com o sinal da Fé e que já gozam dela, por sua fidelidade a tal chamado.

Peçamos que essa bem-aventurança eterna seja também para nós um privilégio, pelos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo, das lágrimas de Nossa Senhora e da intercessão de todos os Santos que hoje comemoramos, a fim de um dia nos encontrarmos em sua companhia no Céu. Enquanto lá não chegarmos, podemos nos relacionar com essa enorme plêiade de irmãos celestes, membros do mesmo Corpo, por um canal direto muito mais eficiente do que qualquer meio de comunicação moderno: a oração, o amor a Deus e o amor a eles enquanto unidos a Deus. Tenhamos a certeza de que, do alto, eles nos olham com benevolência, rogam por nós e nos protegem.

Obras consultadas:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol VII, Libreria Editrice Vaticana,
Città del Vaticano, 2013
 
RODRIGUES, Pe. Afonso, Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs, Tip da União Gráfica, Lisboa, 1932

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E Rodolfo não cobriu a fogueira

05 de Outubro de 2013

27º Domingo do tempo comum

A chuva afinal tinha passado. Todos estavam contentes, depois de uma noite tempestuosa podiam, com calma, comemorar o São João! Mauro, o anfitrião, chamou seu irmão e filho para acenderem a fogueira que estava no centro do terreiro. Passou o tempo e a fogueira não acendia. Depois de muitas tentativas frustradas, Carlos disse ao irmão: “Não é possível acender isso, a lenha está encharcada!”. O espanto tomou conta de Mauro que logo gritou o nome do filho, Rodolfo. “A lenha toda esta molhada. Você a cobriu ontem como mandei?” perguntou o pai.

De fato, com a chuva da véspera, ele ordenara ao jovem que cobrisse a fogueira mas… Rodolfo respondeu: “Papai, eu esqueci”.

A Teologia nos ensina que a fé é um hábito do entendimento. É a Palavra quem aperfeiçoa o entendimento, mas para este penetrar na palavra necessita das boas disposições do homem que a recebe. Se as disposições vão melhorando, a palavra já recebida cresce por si só. Mas para melhorar as disposiçóes é preciso aumentar a caridade. A caridade aumenta a medida em que matamos o amor próprio e nos inflamamos do amor de Deus. Nosso amor próprio é como a água na lenha de um fogueira. Assim como a água impede que o fogo queime a lenha, nosso amor próprio não permite que o Amor de Deus arda em nós. E sobre o amor próprio a grande Santa Teresa que nos ensina: “Não está em nós o poder de colocar ou tirar Deus de nossa alma, mas sim o poder de colocar ou tirar a nós mesmos. Quando tiramos a nós mesmos, colocamos a Deus”.

São João da Cruz diz que “ela [a FÉ] serve de pé para irmos a Deus”. A virtude da fé está no centro do Evangelho deste domingo. Através da Palavra, Cristo quer incendiar nossas almas; basta que a lenha não esteja molhada.

Em sua obra “O inédito sobres os Evangelhos”, Mons. João Clá Dias nos apresente uma importante meditação e um exame de consciência para este 27º Domingo do Tempo Comum.

Nosso Senhor já os advertira, em ocasiões anteriores, a respeito do risco do amor desordenado às riquezas — conforme já consideramos, ao comentar a parábola do administrador infiel (cf. Lc 16, 1-13) e a do pobre Lázaro (cf. Lc 16, 19-31), no Evangelho do 25º e 26º Domingos do Tempo Comum —, consequência de uma fé apequenada. Os discípulos foram, pois, compreendendo a necessidade dessa fundamental virtude, sem a qual seria impossível perseverar até o fim de sua missão.

 Naquele tempo, os Apóstolos disseram ao Senhor: “Aumenta a nossa fé!”

Mas era preciso pedir esse aumento de fé, se já a possuíam no seu interior? Todavia, o pedido dos Apóstolos tinha fundamento. A virtude infusa da fé é passível de acréscimo ou de diminuição, e tanto pode se fortalecer como enlanguescer-se. Segundo explica ainda São Tomás,11 ela cresce ou diminui de forma proporcional ao número de verdades conhecidas. Por esse motivo, além dos atos de piedade e devoção praticados — os quais também tornam a fé mais robusta —, fortalecerá essa virtude quem estudar a Doutrina Católica, ampliando o quadro de verdades conhecidas pela própria inteligência.

As dificuldades do dia a dia nos fazem chegar a uma conclusão: é indispensável suplicar com fervor o auxílio divino. Agiram, então, muito bem os Apóstolos ao pedir o aumento de sua fé, a qual, segundo podemos julgar pela resposta de Nosso Senhor, era bem frágil…

O Senhor respondeu: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira:  ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria”.

Sua resposta reveste-se de certa dureza. De fato, a fé de seus escolhidos era ainda menor que o minúsculo grão de mostarda, quase do tamanho de uma partícula de açúcar. Ora, bastava uma fé de diminuta dimensão para mandar uma árvore sólida como a amoreira jogar-se ao mar. Afirmação surpreendente!

A fé é, de fato, capaz de mover montanhas, pois por detrás dela está o poder de Deus, e quando alguém se une à força divina pela robustez de tão valiosa virtude, torna-se forte quanto é forte o próprio Deus.

Nosso Senhor contrapõe o conceito errado do mundo a respeito do relacionamento do homem com Deus.

“Se algum de vós tem um empregado que trabalha a terra ou cuida dos animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo: ‘Vem depressa para a mesa?’ Pelo contrário, não vai dizer ao empregado: ‘Prepara-me o jantar, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois disso tu poderás comer e beber?’ Será que vai agradecer ao empregado, porque fez o que lhe havia mandado? Assim também vós: quando tiverdes feito tudo o que vos mandaram, dizei: ‘Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer’”.

O Divino Mestre tem diante de si ouvintes com acentuado senso hierárquico, portanto, sem os igualitarismos dos dias hodiernos, e para quem todas as funções sociais eram muito bem definidas. Por essa razão pôde fazer uso, nesta parábola, da figura do servo.

Esta cena, narrada por Cristo com sabedoria infinita, ilustra qual deve ser nosso relacionamento com Deus. Quando conseguimos cumprir inteiramente os Mandamentos ou nossas próprias obrigações, devemos reconhecer não ter sido por esforço próprio, nem como fruto de qualidades ou capacidades pessoais, mas, sim, da graça. Antes mesmo de termos realizado algum ato bom, Nosso Senhor já nos pagou com antecipação, concedendo-nos sua ajuda. Por isso, mesmo tendo feito o bem, não temos o direito, por nós mesmos, de merecimento algum.

O homem deve, pois, considerar-se um ser contingente, dependente dos outros e consciente de que, em relação a Deus, essa dependência deverá ser absoluta. Se existimos, é porque em primeiro lugar Ele existe e, em sua infinita bondade, tirou-nos do nada, sem nosso consentimento, para dar-nos uma alma na qual pudesse ser introduzida a vida da graça.

Uma só criatura soube ter fé ardente e compreender a contingência de modo perfeito, em sua plenitude, tendo sido objeto de um dom insuperável da parte de Deus, [Maria Santíssima]. “Porque olhou para a humilhação de sua escrava” (Lc 1, 48). Somente Ela teve uma noção clara e sublime de seu nada e de sua dependência completa do Altíssimo.

Obras Consultadas:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelho, Libreria Editrice Vaticana
Città del Vaticano, 2012, pag 389-400
ORIA, Mons. Angel Herrera, VERBUM VITAE – La Palavra de Cristo, BAC, Madrid, 1954, pag 77
PHILIPON, M. Michel, Doutrina espiritual de Elisabete da Trindade, Paulus, 1988, pag 93

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