By

3º Domingo da Quaresma

Naquele tempo, Jesus chegou a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto de um terreno que Jacó tinha dado ao seu filho José. 6a Era aí que ficava o poço de Jacó.

   O Livro do Gênesis nos relata alguns poços mandados escavar por Isaac (cf. Gn 26, 18-32). Acostumados nós, hoje, com a água encanada, não fazemos ideia da fundamental importância de uma fonte, ou de um poço, no Oriente daqueles tempos. Este, em concreto, havia sido escavado certamente com o fim de evitar a contaminação com as águas dos vizinhos cananeus, pois nas cercanias havia algumas generosas fontes.

Cansado da viagem, Jesus sentou-Se junto ao poço. Era por volta de meio-dia.

   Um dos Padres da Igreja que, com voo de águia, tratou belamente do assunto foi Santo Agostinho:

   “Não é em vão que Jesus Se fatiga, não Se cansa sem motivo a fortaleza de Deus, não Se fatiga sem causa Aquele por quem os fatigados retomam as forças. Não é em vão que Se fatiga Aquele cuja ausência nos cansa e cuja presença nos conforta.

   “[…] Jesus é forte e, ao mesmo tempo, débil. Queres ver quão forte é este Filho de Deus? ‘Tudo se fez por Ele, e sem Ele nada se fez’ (Jo 1, 3). E tudo foi feito sem cansaço. Queres agora conhecer sua debilidade? ‘O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós’ (Jo 1, 14). A fortaleza de Cristo te criou, e a debilidade deCristo te recriou.

Chegou uma mulher da Samaria para tirar água. Jesus lhe disse:“Dá-Me de beber”.

   Segundo Santo Agostinho, o fato de tratar-se de uma mulher simboliza de algum modo a fundação da Igreja. A samaritana seria a representação da instituição que nasceria do sagrado costado de Nosso Senhor Jesus Cristo.

   Quanto ao fato de não ser ela judia, o grande Doutor interpreta como sendo uma referência aos gentios dos quais nasceriaa Igreja: “era figura da Igreja, que se formaria dos gentios, gente estranha aos judeus”.

   O Senhor lhe pede água. Será apenas física sua sede? Trata-se do mesmo “tenho sede” (Jo 19, 28), pronunciado por Ele no alto da Cruz; seu grande anseio é redimir o gênerohumano e, neste caso, quer salvar aquela alma.

   Nosso Senhor costuma agir adaptando-Se aos modos de ser de cada um. Para Natanael Ele dirá que o viu debaixo de uma figueira (cf. Jo 1, 48); para André e João será uma proclamação sobre o Cordeiro de Deus (cf. Jo 1, 35-37); para os ReisMagos era a estrela aparecida no Oriente (cf. Mt 2, 2). Para esta mulher Ele pede água. Quão misteriosa é a bondade de Deus!

Os discípulos tinham ido à cidade para comprar alimentos.

   Jesus quis de fato estar a sós. Nada Lhe custaria conservar alguns Apóstolos consigo, e Lhe bastaria uma insinuação, indicando o desejo de que alguns O acompanhassem, para ser atendido com alegria.

   A mulher samaritana disse então a Jesus: “Como é que Tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?” De fato, os judeus não se dão com os samaritanos.

   A correspondência a esse primeiro chamado de Nosso Senhor poderia condicionar a perseverança dela e até mesmo sua salvação, porém sua reação foi a de levantar obstáculo. Jesus, contudo, não desistirá de chamá-la à conversão.

Respondeu-lhe Jesus: “Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é que te pede: ‘Dá-Me de beber’, tu mesma Lhe pedirias aEle, e Ele te daria água viva”.

   Didática insuperável, perfeitíssima. É bem conhecida a curiosidade feminina e é desta que Jesus procura tirar partido.

   São duas sedes de teor distinto que acometem o Divino Mestre. Jesus necessita da água comum e corrente, mas sua sede de converter  aquela alma é incomparavelmente maior, e essa é a razão pela qual  Ele procura despertar um interesse, todo feito de fé, no interior de sua interlocutora.

A mulher disse a Jesus: “Senhor, nem sequer tens balde e o  poço é fundo. De onde vais tirar a água viva? Por acaso, és maior que nosso pai Jacó, que nos deu o poço e que dele bebeu, como também seus filhos e seus animais?”

   A partir deste curto diálogo, passa a tratá-Lo de “Senhor”, pois algo do mistério de Jesus ela já entrevê, o que significa um enorme passo para uma samaritana na consideração de um judeu.

   Ela não chega a entender bem a substância das afirmações feitas por Jesus, mas decerto já estava atraída pelo todo do Divino Mestre, e por isso não as contradiz, apenas externa sua perplexidade, disposta a aceitar uma explicação.

   Os samaritanos tinham a ufania de declarar ter sido sua terra habitada pelos patriarcas (cf. Gn 12, 6; 33, 18; 35, 4; 37, 12; etc.). Pretendiam com isso abrandar as abjeções que os judeus lhes tinham, oriundas da miscigenação de raça e de religião. Daí a lembrança do poço de Jacó.

Respondeu Jesus: “Todo aquele que bebe desta água terá sede de novo. Mas quem beber da água que Eu lhe darei, esse nunca mais terá sede. E a água que Eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna”.

   Deus criou o homem com sede de infinito. Nossa alma só repousa em Deus, pois Ele é nosso fim último, e nada fora d’Ele nos satisfaz plenamente.

   Sem desprezar em nada a memória de Jacó, Jesus oferece à samaritana uma água extraordinariamente superior àquela do patriarca. Mais ainda, Ele promete “uma fonte de água que jorra para a vida eterna”.

A mulher disse a Jesus: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede e nem tenha de vir aqui para tirá-la”.

   Com a fé mais robustecida, ela crê no poder de Deus em criar uma água capaz de eliminar definitivamente a sede e, em consequência, de dispensá-la do trabalho de retirar daquele poço a água de todos os dias. De si, já seria uma maravilha criar essa água, masJesus lhe fala de um prodígio maior e incomparável: o das águas da graça. “O bem da graça é, para o indivíduo, melhor que o da natureza de todo o universo”, afirma São Tomás de Aquino.

   Santo Agostinho glosa este versículo, mostrando que há tão só uma água capaz de extinguir a sede por completo, por fazer brotar no nosso interior uma fonte permanente, que jorrará até o feliz dia de nossa entrada para a eternidade. Se pedíssemos a Jesus, tal qual a samaritana o fez: “Senhor, dá-me dessa água”, Ele nos responderia: “Se alguém tiver sede, venha a Mim e beba. Quem crê em Mim, como diz a Escritura: ‘Do seu interior manarão rios de água viva’. Dizia isso, referindo-Se ao Espírito que haviam de receber os que cressem n’Ele” (Jo 7, 37-39). No entanto, num primeiro momento, ela ainda não alcança o verdadeiro sentido das palavras de Nosso Senhor. A essa mulher se aplica o que diz São Paulo: “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus”

   A samaritana, apesar de não ter vida virtuosa e de ser uma estrangeira, com todas as implicações da Lei, possuía uma alma penetrada por comovedora simplicidade, verdadeiramente cândida. Seu modo de ser é humilde e despretensioso. É cumpridora de suas obrigações e conhecedora dos princípios e tradições de sua religião. Sua conversa é elevada e sincera, como quando manifestou o quanto acreditava em Jesus. Essas qualidades atraíram o amor do Redentor e O fizeram ir em busca da ovelha perdida.

  Na ciência ou na ignorância, na virtude ou no pecado, o fundamental é buscarmos a água da vida, nas fontes da Santa Igreja. É indispensável não nos apegarmos a certos conhecimentos que possamos ter adquirido e, desta forma, fugirmos do orgulho da ciência. Ou então assumirmos a simplicidade de espírito e humildade de coração da samaritana, ainda que, infelizmente, estejamos dentro de uma via pecaminosa como a dela.

   Em síntese, roguemos, de modo especial neste domingo, à Santíssima Virgem para que nos obtenha de seu Divino Filho a água da vida, fazendo jorrar em nossos corações o líquido precioso da graça que nos conduz à morada eterna.

Obra consultada

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

By

2º Domingo da Quaresma

   São Paulo declara aos coríntios ter sido arrebatado ao Céu, em certo momento de sua vida, onde ouviu o que era impossível transmitir e menos ainda explicar: “foi arrebatado ao Paraíso e lá ouviu palavras inefáveis, que não é permitido a um homem repetir” (II Cor 12, 4).
Esse é o Céu, “o fim último e a realização de todas as aspirações mais profundas do homem, o estado de felicidade suprema e definitiva”; e essa é a glória que transparece no Tabor, ao transfigurar-Se o Senhor.

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha.

   O Divino Mestre se comprazia com o alto das montanhas, e ali procurava prodigalizar seus grandes mistérios.

   Nesse caso concreto, escolheu o Tabor talvez para simbolizar a necessidade de elevarmos nossos corações sobre as coisas deste mundo conforme as palavras de São Remígio: “Com isto o Senhor nos ensina que é necessário, para quem deseja contemplar a Deus, não se deixar atolar nos baixos prazeres, mas elevar a alma para as coisas celestiais, por meio do amor às realidades superiores.
Os comentários se multiplicam a propósito da razão de ter Jesus escolhido esses três Apóstolos para gozarem do convívio glorioso do Senhor. Um motivo claro e imediato salta logo aos olhos: estes veriam mais de perto as humilhações pelas quais passaria o Salvador. Como também era fundamental haver algumas testemunhas da glória de Jesus para sustentarem, na prova da Paixão, os Apóstolos em suas tentações.

E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o Sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz.

   No que terá consistido essa transfiguração? Evidentemente, não viram os Apóstolos a divindade do Verbo de Deus, inacessível aos olhos corporais. Viam apenas uma fímbria dos fulgores da verdadeira glória da humanidade sagrada de Jesus. É provável que fosse nada mais do que o dom da claridade da qual gozam os corpos gloriosos.

Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus.

   Esses dois grandes personagens aparecem na Transfiguração do Senhor, segundo nos assegura São João Crisóstomo, “para que se soubesse que Ele tinha poder sobre a morte e sobre a vida; por esta razão apresenta Moisés, que tinha morrido, e Elias, que ainda vivia”.

Então Pedro tomou a palavra e disse: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, e outra para Elias”.

   Pedro será confirmado em graça apenas em Pentecostes; até lá, sua loquacidade lhe confere o mérito da manifestação de fé na divindade de Jesus (cf. Mt 16, 16; Mc 8, 29; Lc 9, 20), ou o demérito da promessa temerária de jamais romper sua fidelidade (cf. Mt 26, 33-35; Mc 14, 29; Lc 22, 33; Jo 13, 37), ou da negação na casa do sumo sacerdote (cf. Mt 26, 69-74; Mc 14, 66-72; Lc 22, 55-60; Jo 18, 25-27). No Tabor, penetrado de desmedida alegria, deseja perpetuar aquela felicidade. Pedro não estava ainda suficientemente instruído pelo Espírito Santo para saber o quanto a Terra não era o ambiente para o gozo permanente. Não tinha noção de quanto as consolações são auxílios passageiros concedidos por Deus para nos estimular em seu serviço e a sofrer por Ele.

Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: “Este é o meu Filho amado, no qual Eu pus todo meu agrado. Escutai-O!”

   Nas Escrituras Sagradas, aparece algumas vezes esta ou aquela nuvem para simbolizar a presença de Deus e sua teofania. Várias são as passagens do Êxodo em que elas são utilizadas como sinais sensíveis da manifestação divina: “apareceu na nuvem a glória do Senhor!” (16, 10); “E logo que ele acabava de entrar, a coluna de nuvem descia e se punha à entrada da tenda, e o Senhor se entretinha com Moisés. À vista da coluna de nuvem, todo o povo, em pé à entrada de suas tendas, se prostrava no mesmo lugar” (33, 9-10), etc.
Se bem que sejamos verdadeiros filhos de Deus, como nos assegura o salmista — “Eu disse: Sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo” (Sl 81, 6) —, nós o somos por misericordiosa adoção. O Filho de Deus por natureza é um só: “O Filho de Deus veio e nos deu entendimento e luz para conhecer ao verdadeiro Deus” (I Jo 5, 20).

Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra.

   São Jerônimo procura nos explicar as razões desta queda dos Apóstolos: “Por três motivos caíram aterrorizados: porque compreenderam seu erro, porque ficaram envolvidos pela nuvem luminosa e porque ouviram a voz de Deus que lhes falava. E não podendo a fragilidade humana suportar tamanha glória, ela se estremece com todo o seu corpo e toda a sua alma, e cai por terra: pois o homem que não conhece sua medida, quanto mais queira elevar-se até as coisas sublimes, mais desliza até as baixas”.

Jesus Se aproximou, tocou neles e disse: “Levantai-vos, e não tenhais medo”.

   Além da onipotência de sua presença e de sua voz, Jesus quis tocá-los com sua própria mão. Esse fato nos faz recordar aquela passagem de Daniel: “uma mão me tocou, e fez com que me erguesse sobre os joelhos e as palmas das mãos” (10, 10). Tornou-se evidente para eles o quanto essa força partia de Jesus e não da natureza deles.

Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus.

   Desaparecem de seus olhos a Lei e os profetas. Agora entendem experimentalmente o quanto Jesus é o Esperado das Nações.

Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes: “Não conteis a ninguém esta visão, até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos”.

   Até mesmo no alto do Tabor terminam as alegrias, como sempre ocorre nesta Terra de exílio. É necessário descerem do monte todos aqueles que, ademais, são chamados à vida ativa.
E não deviam dizer nada a ninguém, “porque se fosse divulgada ao povo a majestade do Senhor, este mesmo povo se oporia aos príncipes dos sacerdotes e impediria a Paixão, e assim se retardaria a Redenção do gênero humano”.

   “Sou demasiadamente grande, e meu destino por demais nobre, para que eu me torne escravo de meus sentidos”. Esta foi a conclusão à qual chegou Sêneca por mera elaboração filosófica, sem ter a menor revelação de algo análogo à Transfiguração do Senhor. No Tabor, Jesus Cristo vai muitíssimo além: em sua divina didática, faz-nos conhecer uma parcela de sua glória nos reflexos da claridade própria a seu Corpo após a Ressurreição. Pálida exemplificação do que veremos no Céu, como fruto dos méritos de sua Paixão, dos fulgores de sua visão beatífica e da união hipostática. Como objetivo imediato, quis Ele fortalecer seus discípulos para assumirem com heroísmo as tristes provações de sua Paixão e Morte, à margem da manifestação de sua divindade. Porém, não era alheio aos seus divinos desígnios deixar consignado para a História quais são as verdadeiras e reais alegrias reservadas aos justos, post mortem.

  No Tabor a voz do Pai proclama: “Escutai-O!”. Esta recomendação se dirige sobretudo a nós, batizados, pois somos filhos adotivos de Deus e, portanto, já passamos por uma imensa transformação quando ascendemos à ordem sobrenatural, deixando de ser exclusivamente puras criaturas

   Confiemos nessa promessa com base nas garantias da Transfiguração do Senhor e peçamos à Mãe da Divina Graça que bondosamente nos auxilie com os meios sobrenaturais a chegarmos incólumes, decididos e seguros ao bom porto da eternidade: o Céu.

  Obra consultada:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

By

1º Domingo da Quaresma

   Ninguém se conhece a si mesmo se não é tentado; nem pode ser coroado se não vence; nem vence se não peleja; nem peleja se lhe faltam inimigo e tentações”.

   A Liturgia deste 1º Domingo da Quaresma nos ensina a reconhecer a necessidade e o valor da tentação e o Evangelho nos ensina a opor resistência ao inimigo infernal, seguindo as pegadas de Nosso Senhor.

   A tentação de Jesus se deu no início de sua vida pública, logo depois de ter recebido o Batismo de São João. Estendeu-se ao longo de quarenta dias no deserto de Judá, região isolada, inóspita e habitada por feras selvagens. Segundo a tradição, Ele permaneceu em oração e rigoroso jejum numa elevação existente nas proximidades de Jericó, hoje chamada Monte da Quarentena.

Naquele tempo, Neste primeiro versículo, chama-nos especial atenção o fato de Nosso Senhor ter sido conduzido pelo Espírito Santo.o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo.

   Sua atitude nos mostra que quando somos chamados a realizar alguma obra importante devemos rezar antes, tal como a Igreja recomenda fazer, no início de todas as atividades.

   Em suma, o maligno arrastava uma forte insegurança a respeito da identidade de Cristo, e daí o interesse em tentá-Lo para descobrir quem era, na realidade.

   Quando a tentação se abate sobre nós, temos a tendência de perguntar: “Por que Deus a permite?”. Certamente para o nosso bem, caso contrário Nosso Senhor não a teria experimentado. Lembremo-nos de que Jesus é conduzido pelo Espírito Santo, e quem permite a tentação é o Pai, o qual dissera pouco antes: “Eis meu Filho muito amado em quem ponho minha afeição” (Mt 3, 17). Se o Pai manifesta sua complacência pelo Filho e, em seguida, consente em sua ida para o deserto, por que não quererá que nós, que recebemos a vida divina por meio d’Ele, sigamos o mesmo caminho?

Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso, teve fome.

   O recolhimento de Nosso Senhor no deserto atinge seu auge ao cabo de quarenta dias, e é esse o momento escolhido por satanás para tentá-Lo de forma particular, o que novamente encerra um ensinamento, pois muitas vezes as piores provações se abatem sobre nós nas melhores fases da vida espiritual.

Então, o tentador aproximou-se e disse a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães!”

   Observam os exegetas que o deserto onde Nosso Senhor Se encontrava tinha pedras de aspecto muito aprazível, com formato arredondado e cor dourada, parecido ao dos deliciosos pães ázimos consumidos naquele tempo no Oriente.

   Eis a tática empregada pelo anjo das trevas na hora da tentação: começa por excitar a sensibilidade. Ao agir assim, atinge grande número de almas, sobretudo fomentando o interesse pelos bens materiais. Estes, e em especial o dinheiro, são simbolizados pela pedra e pelo pão, e constituem o maior empecilho para a santificação dos que põem sua esperança nos valores deste mundo.

Mas Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’”.

   Tomando uma atitude radical, Ele cortou a conversa com o demônio. Como podemos comprovar nesta e nas tentações seguintes, suas respostas são taxativas, dadas com a nítida intenção de encerrar o colóquio. Além disso, o argumento utilizado por Jesus baseia-se na autoridade da Escritura, contra a qual não há recurso. 

   Reconhece a necessidade do alimento e até do dinheiro, porém, ensina que devem ser utilizados com a primeira atenção posta em Deus. Seu divino exemplo é de desprendimento das coisas concretas.

Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-O sobre a parte mais alta do Templo, e Lhe disse: “Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus Anjos a teu respeito, e eles Te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”. Jesus lhe respondeu: “Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus!’” 

   Nesta tentação o demônio propunha uma caricatura da Religião verdadeira, excluindo o papel da dor, do sacrifício e do caminho autêntico para a santidade. 

   A resposta admite dois sentidos, para confundir o diabo e dar a conversa, mais uma vez, por concluída: “Não me tentes porque Eu sou Deus” ou “Eu não posso fazer isto, porque seria tentar a Deus”. Nós, porém, podemos interpretá-la como um ensinamento a respeito da resignação que deve caracterizar o nosso relacionamento com Jesus. É lícito pedirmos milagres e até manifestações grandiosas, mas cientes de que se não formos atendidos a nossa fé tem de permanecer intacta. 

Novamente, o diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e sua glória, e Lhe disse: “Eu Te darei tudo isso, se Te ajoelhares diante de mim, para me adorar”. Jesus lhe disse: “Vai-te embora, satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor teu Deus e somente a Ele prestarás culto’”. Então o diabo O deixou. E os Anjos se aproximaram e serviram a Jesus.

   Apesar de ter sido vencido duas vezes, o demônio deseja chegar ao último ponto: ser adorado por Nosso Senhor, o que suporia uma negação do culto a Deus. Para isto ele oferece o domínio temporal que levou muitos homens a seguir os ídolos, abandonando o verdadeiro Deus.

   A Nosso Senhor ele ofereceu o serviço dos Anjos e todos os tesouros da Terra, coisas que era incapaz de conceder, mas que foram entregues a Jesus-Homem junto com a realeza sobre toda a humanidade e sobre a ordem da criação, por ter vencido satanás e ter abraçado os tormentos do Calvário. Eis um princípio que deve nortear constantemente a nossa vida, até a hora da morte: nunca podemos dialogar com o demônio, criatura maldita que sempre tira aquilo que promete. Devemos encerrar qualquer conversa com ele logo no início, com o apoio da Palavra de Deus, à imitação de Nosso Senhor Jesus Cristo.

   As tentações nos obtêm, sobretudo, méritos para a eternidade. Tanto o santo quanto o pecador são tentados, e às vezes o primeiro mais que o segundo, a julgar pelo modo atroz com que satanás investiu contra Nosso Senhor. A grande diferença entre ambos é que um recusa as solicitações e o outro se rende. Logo, ser tentado não é um desastre, pelo contrário, pode ser até umbom sinal. De nossa parte é preciso não consentir e, para isso,  apoiemo-nos no auxílio divino, pois seria uma insensatez concebermos nossas qualidades como o fator essencial na luta contra o demônio, o mundo e a carne.

   Diante da tentação, devemos crer na força de Nosso Senhor Jesus Cristo e não nas nossas. 

   Se uma criança recém-batizada tem mais poder do que todos os infernos reunidos, os que possuem a vida divina nada devem temer! Quando o inimigo nos assalta, unamo-nos ainda mais a Nosso Senhor Jesus Cristo, animados pela lição deste início de Quaresma: para vencer todas as tentações é indispensável contar com a graça divina.

Obra consultada:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

By

8º Domingo do Tempo Comum

   Eis a Liturgia de hoje a nos indicar uma profunda solução para as crises atuais: a da desgastada questão social e a da ameaçada economia mundial.

   Quem nasceu numa Gruta, teve uma manjedoura por berço e em sua vida pública não encontrou onde repousar a cabeça tem absoluta autoridade para discorrer sobre o desprendimento.

   São Francisco de Assis chega a fazer um conúbio místico com a pobreza, e Santo Inácio de Loyola, ao partir para Jerusalém, depois de sua contemplação em Manresa, deixa na praia de Barcelona tudo quanto lhe haviam dado e leva consigo três companheiras: a fé, a esperança e a caridade.

   A outros, porém, São Paulo recomenda serem previdentes: “Quem não quiser trabalhar, não tem o direito de comer” (II Tes 3, 10). Até onde deve ir a preocupação com nossa subsistência e qual a atitude de alma, equilibrada e santa, face aos bens deste mundo, como, também, a plena confiança em Deus, são os temas tratados neste 8º Domingo do Tempo Comum.

Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: “Ninguém pode servir a dois senhores: pois, ou odiará um e amará o outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. 

   O presente Evangelho faz parte do famoso Sermão da Montanha, do qual São Mateus transcreve as partes essenciais. Nele transparece a forte advertência do Divino Mestre contra o desvario dos que se afanam pelos tesouros deste mundo e acabam por se perder em meio às aflitivas preocupações da vida presente.

   Neste versículo, é muito sutil e preciso o emprego do verbo “servir”, e não qualquer outro, pois o problema central não está em ter bens materiais, mas sim no valor que a eles se tributa e, sobretudo, no afeto que se lhes tenha.

   O apego às riquezas constitui, a partir de certo grau, uma real escravidão e “ninguém pode servir a dois senhores quando mandam coisas contrárias, nem mesmo quando ordenam coisas diferentes, porque a própria natureza impede que o amor do servo se reparta para dois senhores distintos”.

   O Divino Mestre nos coloca diante de dois senhores diametralmente opostos no que concerne aos seus respectivos interesses: Deus e o dinheiro. O primeiro nos exige a crença n’Ele e em suas revelações, a esperança em suas promessas, com amor total, além da prática da castidade, da humildade, como também do cortejo de todas as virtudes. O dinheiro cobrade nós, e nos inspira ambição, volúpia de prazeres, vaidade, orgulho, menosprezo do próximo, etc.  Esses dois senhores não admitem rivais.

“Por isso Eu vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida, com o que havereis de comer ou beber; nem com o vosso corpo,com o que havereis de vestir. Afinal, a vida não vale mais do que o alimento, e o corpo, mais do que a roupa? Olhai os pássaros dos céus: eles não semeiam, não colhem, nem ajuntam em armazéns. No entanto, vosso Pai que está nos Céus os alimenta. Vós não valeis mais do que os pássaros?”

   Evidentemente, não exclui Jesus nossa obrigação em relação ao trabalho.Deve-se buscar os bens materiais, mas sem inquietação, pois esta implicaria em negar a infinita generosidade de Deus.

   O Divino Mestre nos dá uma fundamental lição sobre a devida hierarquização de nossas preocupações. Sendo o homem composto de corpo e alma, e por ser esta mais valiosa, merece maior atenção e cuidado. Portanto, se necessário for desprezar ou abandonar outros interesses em benefício da salvação da própria alma, assim se deve proceder, pois Deus nos dará o secundário.

“Quem de vós pode prolongar a duração da própria vida, só pelo fato de se preocupar com isso?”

   A cada novo argumento, torna-se incontestável nossa impotência diante das leis da natureza e, por outro lado, a onipotência divina no governo do mundo. Se, pois, todos os dias a Providência de Deus trabalha em vós para o crescimento de vosso corpo, como ficará Ela inativa diante de verdadeiras necessidades?

“E por que ficais preocupados com a roupa? Olhai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam. Porém, Eu vos digo: nem o rei Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é queimada no forno, não fará Ele muito mais por vós, gente de pouca fé?”

   Jesus deixa claro serem  esses lírios os “do campo”, ou seja, os que nascem a esmo, sem os cuidados dos homens. O exemplo de Salomão, preocupado por vestir-se à altura da sabedoria que lhe havia sido gratuitamente concedida por Deus, é de uma extraordinária eloquência para todos os tempos. Pois, quem com mais arte saberia realizar essa tarefa? São João Crisóstomo sintetiza bem a diferença entre as vestes de Salomão e as criadas por Deus: “das vestiduras de Salomão à flor do campo há a distância da mentira à verdade”.

   Por conseguinte, duvidar ou, pior ainda, não crer na Providência Divina é suficiente para sermos classificados como “gente de pouca fé”, pois, se esses são os cuidados de Deus para com ervas a serem queimadas quando murcharem, quanto maiores não serão eles com as almas imortais e os corpos ressurrectos!

“Portanto, não vos preocupeis, dizendo: O que vamos comer? O que vamos beber? Como vamos nos vestir?”

   Vê-se, neste versículo, o empenho do Divino Mestre em nos convencer das verdades já expostas. “O Senhor repete esta recomendação para nos fazer compreender sua necessidade e gravá-la mais profundamente em nossos corações”.

“Os pagãos é que procuram essas coisas. Vosso Pai, que está nos Céus, sabe que precisais de tudo isso”.

   Além disso, os judeus tinham como um dos mais elevados pontos de honra o de serem contrapostos às concepções dos gentios. Ao atribuir à mentalidade dos pagãos a excessiva preocupação pelos bens deste mundo, Jesus tornava ainda mais patente sua enérgica e categórica rejeição à mesma.

“Pelo contrário, buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo”.

   A síntese de toda a doutrina do Evangelho se encontra nas palavras deste versículo; trata-se de, em primeiro lugar, buscar o Reino de Deus, como também a própria justiça desse mesmo Reino, tal como Jesus o pregou, ou seja, o oposto do almejado pelos fariseus.

   Já em nosso despertar matutino — quer sejamos pobres, quer ricos — devemos ter a lembrança deste conselho de Nosso Senhor Jesus Cristo: “buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça…”. Não obstante, infelizmente, os pobres em sua grande maioria não o fazem e, por isso, são objeto do egoísmo dos outros, vivendo em pobreza neste mundo e ameaçados a nela se lançarem eternamente. E os ricos menos ainda são inclinados a seguir a voz de Cristo, por imaginarem já possuir “todas estas coisas”…

“Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá suas preocupações! Para cada dia, bastam seus próprios problemas”.

   Não nos é vedado fazer uso de uma sábia e moderada prudência  no que tange à nossa manutenção. É-nos proibido, isto sim, uma destrutiva inquietação com o nosso futuro material que nos leve a esquecer as obrigações de maior atualidade e importância, com relação ao Reino de Deus. “Para cada dia, bastam seus próprios problemas”, pois jamais devemos nos esquecer da infinita bondade e carinho do Senhor, conforme transparece na primeira leitura de hoje: “Disse Sião: ‘O Senhor abandonou-me, o Senhor esqueceu-se de mim!’ Acaso pode a mulher esquecer-se do filho pequeno, a ponto de não ter pena do fruto de seu ventre? Se ela se esquecer, Eu, porém, não Me esquecerei de ti” (Is 49, 14-15).

Obra consultada:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol II, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

%d blogueiros gostam disto: