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7º Domingo do Tempo Comum

   No Evangelho de São Mateus o Sermão da Montanha ocupa três capítulos inteiros, e a Santa Igreja de tal forma valoriza esta pregação do Divino Mestre que lhe destinou seis domingos consecutivos do presente Ciclo Litúrgico, a fim de nos permitir considerá-la com maior profundidade e proveito espiritual.

   É no Evangelho deste 7º Domingo do Tempo Comum, entretanto, que se encontra o cerne de todo o Sermão da Montanha, o qual nos indica a via segura para atingirmos a santidade. No que consiste ser santo? Em alcançar a ousada meta traçada pelo Divino Mestre: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”.

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:  “Vós ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’  Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda!”

   Já tivemos ocasião de explicar como a lei de talião vigorava na Antiguidade. Podemos encontrá-la no Código de Hamurabi ― escrito por volta de 1750 a.C.,na Babilônia ―, tendo sido, inclusive, incorporada ao Direito Romano. Vale recordar vir o termo talião do latim talis, significando tal ou igual. Ou seja, o revide deveria ser proporcionado à ofensa.

   Também a legislação mosaica a empregava, como lemos no Livro do Êxodo: “urge dar vida por vida, olho por olho, dente  por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe” (21, 23-25). Se bem que, no início, a aplicação desta lei competisse apenas à legítima autoridade, mais tarde, com a decadência dos costumes, os particulares começaram a fazer justiça pelas próprias mãos e segundo seu critério, praticando atrozes represálias contra os adversários. É, pois, para premunir seus discípulos contra sentimentos de rancor que Nosso Senhor afirma: “se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda!”.

“Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto!”

   Naquele tempo era comum a posse de várias túnicas, mas só um ou dois mantos. Este último era reputado indispensável, o traje por excelência, mais valioso do que a própria túnica. Com efeito, vemos a preocupação de São Paulo em pedir a Timóteo, em uma de suas epístolas, a capa que havia deixado “em Trôade na casa de Carpo” (II Tim 4, 13). Segundo a Lei judaica, quem tomava o manto do próximo como penhor de empréstimo, não podia retê-lo até o dia seguinte e estava obrigado a devolvê-lo antes do pôr do Sol (cf. Ex 22, 26), porque faria muita falta ao proprietário. Assim, ao dizer que entreguemos “também o manto” a quem nos quiser tomar a túnica, Nosso Senhor nos recomenda o mais completo desapego dos bens terrenos e que nossas almas estejam livres de qualquer volúpia de posse.

“Se alguém te forçar a andar um quilômetro, caminha dois com ele!”

   Às vezes, os soldados romanos ou outros funcionários do governo requisitavam a ajuda de alguém para lhes servir de guia ou para outro trabalho, como aconteceu a Simão de Cirene, “que voltava do campo, e impuseram-lhe a Cruz para que a carregasse atrás de Jesus” (Lc 23, 26). Naturalmente, quando um imprevisto semelhante ocorria, muitos se queixavam e até se recusavam a atender ao pedido. Para nos ensinar o valor da caridade, diz Nosso Senhor: “Caminha dois quilômetros com ele!”. Ou seja, desde que esteja a seu alcance, faça de bom grado até mais do que lhe for solicitado.

“Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pede emprestado”.

   É preciso que nós cedamos sempre e demos tudo o que nos pedirem? Se este princípio fosse transformado em lei, a sociedade tornar-se-ia um caos em razão de incontáveis abusos. Não pode ser esta, portanto, a intenção de Nosso Senhor. Deseja Ele que nos esqueçamos de nós mesmos, preocupando-nos com as privações alheias, e que estejamos limpos de qualquer interesse e pragmatismo.

“Vós ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!’”

   Verdadeiro Legislador, Nosso Senhor Jesus Cristo vai retificar as interpretações falseadas da Lei de Moisés, que a alteravam e empobreciam, para dar nova plenitude aos Mandamentos e ensinamentos antigos.Ele mostra quão vazia é, em contraposição ao Evangelho, a moral das exterioridades criada pelos fariseus.

“Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem!”

   Se queremos ser filhos de Deus, precisamos ter uma completa isenção de ânimo em relação aos inimigos e rezar por eles.

   Por certo, não se deve ser indolente e permitir aos adversários da Igreja agirem livremente contra Ela, implantando ainiquidade na Terra. Se é obrigação amar os inimigos, é mister também odiar o pecado! Cumpre, pois, pedir a intervenção divina para fazer cessar o mal e empregar todos os meios ― sempre conforme a Lei de Deus e a dos homens ― para que este não prevaleça no mundo.

“Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos Céus, porque Ele faz nascer o Sol sobre os maus e os bons e faz cair a chuva sobre os justos e injustos”.

   O Pai que está nos Céus derrama as suas graças sobre todos, inclusive sobre os miseráveis e os malfeitores.

   Sendo esta a vontade do Pai, cabe-nos trabalhar com ardor, não apenas pela salvação de todos os que lutam neste valede lágrimas, mas ainda acelerar, com nossas preces e sacrifícios, a libertação das almas que padecem no Purgatório.

“Porque se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os cobradores de impostos não fazem amesma coisa? E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa?”

   A insuperável didática do Divino Mestre nos leva a compreender facilmente através destas duas confrontações que  amar os amigos e benfeitores nada tem de extraordinário. O mérito está em querer o bem até dos que nos atacam, roubam ouinjuriam.

   A esse respeito, esclarece Santo Agostinho: “Só a caridade  distingue os filhos de Deus dos do demônio. Persignem-se todoscom o sinal da Cruz de Cristo; respondam todos: Amém; cantem todos: Aleluia; batizem-se todos; frequentem a igreja, apinhem- -se nas basílicas; não se distinguirão os filhos de Deus dos do demônioa não ser pela caridade. […] Tens tudo o que quiseres; se te falta só a caridade, de nada te aproveita tudo o que tiveres”

   Jesus nos convida a segui-Lo pelas vias heroicas da caridade, da paciência e do perdão máximo, rápido e total. Por este motivo não podemos guardar ressentimento contra ninguém, mas devemosesquecer a priori qualquer ofensa pessoal.

“Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito!”

   Jesus formula, com uma  clareza insofismável, a meta e o objetivo de nossa vida: imitar o Pai celeste, modelo absoluto de santidade, adequando a Ele nossa mentalidade, inclinações e desejos. Mas como seremos perfeitos como Deus é perfeito?

   A vida sobrenatural em nós é passível de crescimento, na medida em que rezemos, nos esforcemos na prática da virtude evitando as ocasiões de pecado e frequentemos os Sacramentos. Mais que em outras épocas históricas, vivemos cercados de perigos que ameaçam nossa perseverança. Para resistir a todas essas solicitações do demônio, do mundo e da carne, é indispensável alimentar um grande desejo de alcançar o heroísmo da perfeição.

   No Céu nos está reservado um lugar que poderemos ocupar com mais ou menos brilho, dependendo da fidelidade com que busquemos ser “perfeitos como o nosso Pai celeste é perfeito”. A conhecida máxima de Paul Claudel, “a juventude não foi feita para o prazer, mas sim para o heroísmo”, na realidade está incompleta, pois o heroísmo em matéria de virtude não é uma obrigação exclusiva dos jovens, mas de todos os homens, sem exceção.

 

Obra consultada:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol II, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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6º Domingo do Tempo Comum

   Deus implantou na alma humana uma luz intelectual pela qual o homem conhece que o bem deve ser praticado e o mal, evitado. Essa luz não se apagou com o primeiro pecado, mas permanece em nossa alma. Conforme afirma o Concílio Vaticano II, o homem “tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus”, a lei natural.

   E como nosso espírito é governado por uma lógica monolítica, não conseguimos praticar qualquer ação má sem procurar justificá-la de alguma maneira. Por isso, para poder pecar, o homem recorre a falsas razões que sufocam sua reta consciência e levam o entendimento a apresentar à vontade o objeto desejado como um bem. É essa a origem dos sofismas e doutrinas errôneas com os quais procuramos dissimular nossas más ações.

  À vista disso, tornou-se indispensável a existência de preceitos concretos a lembrar-nos de forma clara e insofismável o conteúdo da lei natural. São eles os Dez Mandamentos entregues por Deus a Moisés no Monte Sinai.

   Face a toda norma jurídica, há sempre duas correntes: a dos laxistas que, em nome da “moderação”, justificam sua inobservância com todo gênero de ardis e racionalizações; e a dos exagerados, apreciadores da Lei pela Lei, abstraindo do seu verdadeiro espírito e do seu vínculo com o Legislador.

   Na segunda categoria estavam os escribas e fariseus. Julgando-se os únicos donos da verdade, os doutores da Lei se serviram de sua autoridade para criar uma moral baseada nas exterioridades, enquanto o orgulho, a inveja, a ira e outros vícios borbulhavam sem freio em seus corações.

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: “Não penseis que vim abolir a Lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento”.

   Em que consiste, o “pleno cumprimento” anunciado pelo Messias?

   A Antiga Lei era, segundo São Tomás, a da sombra, pois apenas figurava com alguns atos cerimoniais e prometia por palavras a justificação dos homens. A Nova, entretanto, é a da verdade, porque realiza em Cristo tudo quanto a Lei Antiga prometia e figurava. Ou seja, a Lei Nova realiza a Antiga enquanto supre o que faltara a esta.

“Em verdade, Eu vos digo: antes que o Céu e a Terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra”.

   Os adeptos da chamada “moral de situação” defendem a mutabilidade dos princípios éticos em função do contexto no qual são eles aplicados. Segundo essa filosofia, se os costumes evoluem ao longo dos tempos, o mesmo deve ocorrer com as normas morais. Ou então, mesmo admitindo serem elas universais e perenes, deve-se evitar sua aplicação de forma absoluta nas situações concretas, reduzindo seu valor ao de meras orientações a serem ponderadas em função das circunstâncias do momento.

   Ora, a Lei sintetizada nos preceitos do Decálogo é absoluta e permanente, conforme ensina o Catecismo da Igreja Católica: “Visto que exprimem os deveres fundamentais do homem para com Deus e para com o próximo, os Dez Mandamentos revelam, em seu conteúdo primordial, obrigações graves. São essencialmente imutáveis, e sua obrigação vale sempre e em toda parte. Ninguém pode dispensar-se deles”. Por conseguinte, aquilo que era pecado quando Adão e Eva saíram do Paraíso, sê-lo-á também até o último dia, quando for morto o Anticristo e vier o fim do mundo.

“Portanto, quem desobedecer a um só destes Mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será considerado o menor no Reino dos Céus. Porém, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino dos Céus”.

   Ora, pior que desobedecer aos preceitos da Lei divina é criar ou propagar uma doutrina que convide a transgredi-los. Quem assim procede perde, sem dúvida, a graça de Deus e, caso não se emendar, “será considerado mínimo no momento do Juízo; ou seja, será reprovado, será o último. E o último cairá inexoravelmente no inferno”.

“Porque Eu vos digo: Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”.

   Os escribas e fariseus conheciam a Lei em sua perfeição e sabiam pesar cada ato em função dela. sua justiça fundava-se nas exterioridades. “Quanto ao repouso sabático, haviam eles multiplicado as interdições, entrando nos mais ínfimos detalhes. Sobre a questão das impurezas, deram livre curso à imaginação e acrescentaram à legislação mosaica as mais minuciosas prescrições”.

   Jesus nos adverte aqui ser indispensável, para entrar no Reino dos Céus, praticar uma virtude “maior” que a dos fariseus e mestres da Lei. Ou seja, não se prender às exterioridades, nem fazer enganosas racionalizações, mas cumprir de fato em sua integridade, amorosamente, os Dez Mandamentos.

“Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal’. Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo; quem disser ao seu irmão: ‘patife!’ será condenado pelo tribunal; quem chamar o irmão de ‘tolo’ será condenado ao fogo do inferno. Portanto, quando tu estiveres levando a tua oferta para o altar, e aí te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta aí diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão. Só então vai apresentar a tua oferta”.

   Os fariseus consideravam o homicídio um pecado gravíssimo, mas não reputavam ser falta moral encolerizar-se com o irmão, ou dizer-lhe toda espécie de desaforos.

   Com sua palavra e exemplo, ensinou Jesus que na Nova Aliança o relacionamento entre os homens deve, pelo contrário, pautar-se pelo respeito, consideração e estima, de forma a não dar ocasião a qualquer queixa recíproca.

“Procura reconciliarte com teu adversário, enquanto caminha contigo para o tribunal. Senão o adversário te entregará ao juiz, o juiz te entregará ao oficial de justiça, e tu serás jogado na prisão. Em verdade Eu te digo: dali não sairás, enquanto não pagares o último centavo”.

   O “adversário” de que fala Nosso Senhor neste versículo simboliza, sob certo prisma, Ele mesmo: o Bem substancial do qual nos tornamos inimigos ao pecar. O mais necessário e urgente, portanto, é procurar primeiro nos reconciliar com Ele, reconhecendo as nossas faltas, pedindo perdão por elas e fazendo firme propósito de doravante não nos desviarmos das retas vias do Redentor. Pois, cedo ou tarde, terminará nossa peregrinação terrena e compareceremos diante do Supremo Juiz, que pronunciará uma sentença justíssima e inapelável. Se nesse dia nosso Divino Adversário ainda tiver algo a declarar contra nós, a dívida será saldada, na melhor das hipóteses, no fogo do Purgatório, do qual não se sai sem pagar até o último centavo.

“Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração. Se o teu olho direito é para ti ocasião de pecado, arranca-o e joga-o para longe de ti! De fato, é melhor perder um de teus membros, do que todo o teu corpo ser jogado no inferno. Se a tua mão direita é para ti ocasião de pecado, corta-a e joga-a para longe de ti! De fato, é melhor perder um dos teus membros, do que todo o teu corpo ir para o inferno”.

   “Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração”: refere-Se aqui Nosso Senhor ao Nono Mandamento do Decálogo, o qual condena também o pecado interior: “Não cobiçarás a mulher do teu próximo” (Dt 5, 21).

  Logo a seguir, o Divino Mestre frisa a radicalidade com que devem ser praticados os Mandamentos, exortando-nos a levar até os últimos extremos o princípio da fuga das ocasiões de pecado. “Vigiai e orai para que não entreis em tentação” (Mt 26, 41), dirá Ele no Horto das Oliveiras. A oração é indispensável, mas não suficiente: é também necessário vigiar e afastar- se completamente daquilo que conduz ao pecado, sobretudo em matéria de castidade.

“Foi dito também: ‘Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de divórcio’. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por motivo de união irregular, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada comete adultério”.

   Moisés estabeleceu no Deuteronômio que “se um homem, tendo escolhido uma mulher, casar-se com ela, e vier a odiá-la por descobrir nela qualquer coisa inconveniente, escreverá uma letra de divórcio, lha entregará na mão e a despedirá de sua casa” (24, 1). Ora, as interpretações laxistas dessa passagem bíblica deram margem a escandalosos abusos, a ponto de ser o divórcio, segundo o Cardeal Gomá, “um mal gravíssimo do povo judeu, no tempo de Jesus”.

   Com efeito, explica Fillion: “As palavras ‘coisa inconveniente’ utilizadas pelo Deuteronômio eram de si vagas. Mas tinham recebido de Hilel e dos de sua escola uma interpretação escandalosa, que abria de par em par as portas para a paixão. Admitiam que a mulher, mesmo fidelíssima, podia ser despedida por qualquer motivo ou, digamos melhor, por qualquer frívolo pretexto. Um prato mal preparado, a vista de uma mulher mais formosa — atreviam-se a dizer os rabinos — eram razão para o divórcio”.

   Acrescia-se a isto o fato de o divórcio não ser conforme à lei natural. Como mais adiante afirmará o próprio Nosso Senhor, tratava-se de uma concessão temporária feita por Moisés devido à dureza de coração dos hebreus, “mas no começo não foi assim” (Mt 19, 8).

   Comenta a este propósito São Cromácio de Aquileia: “Com razão, nosso Senhor e Salvador, eliminada aquela permissão, restaura agora os preceitos de sua antiga constituição. Ordena, pois, conservar como lei indissolúvel a união do matrimônio casto, mostrando que a lei conjugal estava instituída originariamente por Ele”.

“Vós ouvistes também o que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso’, mas ‘cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor’. Eu, porém, vos digo: Não jureis de modo algum: nem pelo Céu, porque é o trono de Deus;  nem pela Terra, porque é o suporte onde apoia os seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do Grande Rei. Não jures tampouco pela tua cabeça, porque tu não podes tornar branco ou preto um só fio de cabelo”. 

  No tempo de Jesus, o abuso de jurar a qualquer propósito alcançara um grau inacreditável, e isso O levou a condenar explicitamente, neste Sermão da Montanha, todo tipo de juramento.

   Ocorria que, levados pelo orgulho, julgaram os fariseus haver maior honra e mérito em “fazer todas as coisas por Deus, obrigando-se por juramento”; e do preceito “não tomarás o nome de Deus em vão” deduziram, por uma interpretação forçada: “logo, tomarás o nome de Deus sempre que seja como garantia de algo que não seja falso”.

   Entre os cristãos, pelo contrário, devem reinar a sinceridade e a confiança, fruto da retidão de almas habitualmente em estado de graça, conforme ensina Santo Hilário de Poitiers: “A fé elimina-o costume frequente de jurar. Fundamenta na verdade a atividade de nossa vida e, rechaçando a inclinação para mentir, prescreve a lealdade tanto no falar como no ouvir… Portanto, quem vive na simplicidade da fé não precisa recorrer a juramentos”

“Seja o vosso ‘sim’: ‘Sim’, e o vosso ‘não’: ‘Não’. Tudo o que for além disso vem do maligno”.

   A isso nos convida o Papa João Paulo II: “Aprendei a pensar, a falar e atuar segundo os princípios da simplicidade e da clareza evangélica: ‘Sim, sim; não, não’. Aprendei a chamar de branco ao branco, e preto ao preto — mal ao mal, e bem ao bem. Aprendei a chamar pecado ao pecado, e a não lhe chamar libertação e progresso, ainda que toda a moda e a propaganda fossem contrárias”.

   A leitura do Evangelho deste domingo nos reporta a um  dos problemas mais graves do mundo moderno: a terrível perda do senso moral que assola as almas de tantos dos nossos contemporâneos.

   Com efeito, afirma Bento XVI, “vivemos num contexto cultural marcado pela mentalidade hedonista e relativista, que propende para eliminar Deus do horizonte da vida, não favorece a aquisição de um quadro claro de valores de referência e não ajuda a discernir o bem do mal e a maturar um justo sentido do pecado”.

   Aproveitemos esta Liturgia do 6º Domingo o Tempo Comum para analisarmos nossa consciência à procura de alguma racionalização que nos esteja conduzindo a concessões morais, em nossa vida profissional ou particular.

Obra consultada:  DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol VII, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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3º Domingo do Tempo Comum

 

Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galileia.

   A prisão do Precursor, determina o fim do regime da Lei e dos profetas e o começo da pregação sobre o Reino dos Céus, conforme veremos na Liturgia deste 3º Domingo do Tempo Comum.

   Como podemos comprovar, pelos Evangelhos, Jesus era conduzido pelo Espírito e, por um sopro d’Ele, Se retira para a Galileia. Não por temer o martírio, mas por não haver ainda chegado sua hora.

   É o próprio Espírito Santo que com sabedoria nos inspira a escolher os tempos e os lugares. Ele é quem nos ensina quando devemos fugir das perseguições ou afrontá-las, em quais momentos temos obrigação de falar ou de calar, de manifestar-nos a todos ou de nos recolher. Se fôssemos inteiramente flexíveis aos sopros da graça do Espírito Santo, maravilhas sairiam de nossas mãos para a glória de Deus e da Santa Igreja, o bem dos outros e a santificação de nossas almas.

   Infelizmente, com raras exceções, a humanidade se move, ao longo da História, muito mais pelo interesse pessoal, pela ambição, pela inveja, pelo amor-próprio, pela vaidade, pelo prazer, em uma palavra, pelo pecado. Quão grande desperdício de dons, virtudes e graças, do qual se prestará contas diante do Juízo de Deus!

Deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do Mar da Galileia, a no território de Zabulon e Neftali…

   Como claramente se deduz, foi por motivos ocasionais que Jesus “foi morar em Cafarnaum”. Entretanto, pode-se afirmar, com segurança, que nada se passava na vida do Salvador sem ter grandes razões como causa.

   Um motivo mais sobrenatural levou Jesus a tomar este caminho: “Começa Jesus a evangelizar as regiões por onde tivera início a defecção de Israel. Demonstra com isso sua misericórdia e sabedoria, levando o remédio onde mais grave era o mal, servindo- Se de uma cidade populosa, mas incrédula e preocupada só com os negócios humanos, para que dali se irradiasse a pregação do Reino de Deus. Quis, assim, significar que quem mais necessita de remédio são os enfermos, não os sadios; e que nunca devemos resistir a nenhum apostolado sob pretexto de que o campo não está preparado para receber nosso trabalho”.

…para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías: “Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho do mar, região do outro lado do rio Jordão, Galileia dos pagãos! O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz, e para os que viviam na região escura da morte brilhou uma luz”.

Trata-se de uma belíssima profecia que se cumpre ao estabelecer-Se o Senhor em Cafarnaum. De fato, segundo nos é descrito pelo Segundo Livro dos Reis (cf. 15, 29), Teglat-Falasar, rei dos Assírios, invadiu várias regiões, entre as quais as terras de Zabulon e Neftali. Isto se deu por um castigo de Deus. Foi assim devastada a Galileia e tomada pelos gentios, e daí seu nome “Galileia dos pagãos”.

   Essa era a principal razão de se terem constituído seus habitantes em objeto de desprezo da parte do resto da nação, pois grande era a infiltração de gentios arameus, itureus, fenícios e gregos, que inevitavelmente se mesclavam com os judeus de raça. Ora, torna-se compreensível o quanto se corromperam as doutrinas e os bons costumes religiosos do povo eleito naquelas paragens, devido à forte e diversificada influência pagã, bem como o motivo pelo qual ele “vivia nas trevas” e na “região escura da morte”.

Daí em diante Jesus começou a pregar dizendo: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”.

O Reino está próximo e, para nele penetrar, é preciso fazer penitência, humilhar-se, purificar-se. É a via segura para se obter a paz com Deus e consigo mesmo. Essa foi a condição colocada por Jesus, e, por este motivo, “não começou” — diz o Cardeal Gomá, referindo o pensamento de São João Crisóstomo — “pregando as altas coisas da justiça da Nova Lei, mas as coisas íntimas da retificação da vontade pela penitência.

Quando Jesus andava à beira do Mar da Galileia, viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André. Estavam lançando a rede ao mar, pois eram pescadores. Jesus disse a eles: “Segui-Me, e Eu farei de vós pescadores de homens”. Eles imediatamente deixaram as redes e O seguiram. Caminhando um pouco mais, Jesus viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João. Estavam na barca com seu pai Zebedeu consertando as redes. Jesus os chamou. Eles imediatamente deixaram a barca e o pai, e O seguiram.

   O padre Luis María Jiménez Font, faz um excelente comentário sobre essa passagem: “Parece que a vocação dos Apóstolos se passou da seguinte maneira: Cristo recebeu espontaneamente os que a Ele se juntaram, procedentes do discipulado do Batista — André e Pedro, João e Tiago —, e no primeiro retorno à Galileia, Filipe e Natanael, aos quais permitiu Jesus retomar suas atividades depois da cura do filho do régulo, acabada a primeira pregação na Judeia, pois o primeiro ministério do Senhor na Galileia, parece que Ele o fez completamente só. Quando já era conhecido na região, decidiu formalizar o ponto da colaboração alheia, e chamou outra vez aqueles que no início O tinham acompanhado por devoção, para que O seguissem de modo definitivo e plenamente dedicado, no dia da pesca milagrosa”.

Jesus andava por toda a Galileia, ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando todo tipo de doença e enfermidade do povo.

   Depois de longas décadas no silêncio oculto de Nazaré, vemos agora o Salvador no pleno exercício de sua missão pública, pregando sobre o Reino de Deus, curando os enfermos e expulsando os demônios. Não sabemos dizer quanto durou essa zelosa atividade apostólica, e não seria exagerado supor ter ela se prolongado por vários meses.

   No último ano de sua vida pública, a manifestação será revestida de um esplendor exuberante. Mas, neste período da Galileia, “o Evangelho do Reino” é pregado pelo Filho do Homem a uma opinião pública com insuficiente fé para reconhecer a infinita grandeza do Filho de Deus.

 

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Obra consultada:  DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol II, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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2º Domingo do Tempo Comum

 I – Um dos mais belos encontros da História

   “O semelhante se alegra com seu semelhante”, diz um antigo provérbio latino. Ora, se grande é o júbilo de duas crianças afins ao se encontrarem pela primeira vez no colégio, qual não terá sido a reação dos dois maiores homens de todos os tempos, ao se contemplarem face a face?

   Assim se realizou um dos mais belos encontros da História, João Batista diante de Jesus; para melhor compreendê-lo, analisemos as analogias entre um e outro.

   Apesar de serem duas pessoas infinitamente distantes entre si pela natureza — João é mero homem, Jesus é a Segunda Pessoa da Trindade Santíssima —, numerosos traços de semelhança os unem.

   Jesus é o Alfa e o Ômega da História. João é o começo do Evangelho e o fim da Antiga Lei.1 Isto o afirma o próprio Nosso Senhor: “Porque os profetas e a Lei tiveram a palavra até João”

   Além do mais, a concepção de ambos, de Jesus e de João, é precedida pelo anúncio do mesmo embaixador, São Gabriel Arcanjo (cf. Lc 1, 11-19.26-35). As mensagens não diferem muito, em seus termos, uma da outra. Os nomes de Jesus e de João foram designados por Deus (cf. Lc 1, 13.31).
No próprio ato de anunciar o nascimento, o mensageiro celeste profetiza também o futuro tanto do Precursor (cf. Lc 1, 14-17) quanto do Messias (cf. Lc 1, 32-33).

   “João andava vestido de pelo de camelo […], e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre”. João atraiu multidões: “E saíam para ir ter com ele toda a Judeia, toda Jerusalém” (Mc 1, 5), “porque todos julgavam ser João deveras um profeta” (Mc 11, 32).

   As repercussões sobre sua figura, palavras e obras ecoaram entre os vales e os montes da Terra Prometida, a ponto de o povo chegar a pensar que “talvez João fosse o Cristo” (Lc 3, 15). Pois bem, fixemos em nossa lembrança essa gloriosa projeção alcançada em vida por São João Batista e abramos um parênteses para considerar a principal de suas virtudes: a da restituição, a qual consiste essencialmente em atribuir a Deus os dons d’Ele recebidos.

II – Inveja e ambição, vícios universais

   A ambição é uma paixão tão universal quanto o é a vida humana. Quase se poderia dizer que ela se instala na alma antes mesmo do uso da razão, sendo discernível com facilidade no modo de a criança agarrar seu brinquedo ou na ânsia de ser protegida.

   O desejo de ser conhecida e estimada é a primeira paixão que macula a inocência batismal. Quantos de nós não nos lançamos nos abismos da ambição, da inveja e da cobiça já nos primeiros anos de nossa infância? Essas provavelmente foram as raízes dos ressentimentos que tenhamos tido a propósito da glória dos outros. Sim, pelo fato de desejarmos a estima de todos, por nos crermos no direito à glória e ao louvor dos nossos circunstantes, constitui para nós uma ofensa o sucesso dos outros. Por isso São Tomás define a inveja como sendo a tristeza sentida porque “o bem do outro é considerado um mal pessoal na medida em que diminui nossa glória e nossa excelência”.

   Há paixões que se mantêm letárgicas até a adolescência, e assim não o é a inveja; ela se manifesta já na infância e acompanha o homem até a hora de sua morte. Quantas vezes não acontece de ser necessário separar-se irmãos, ou irmãs, na tentativa de corrigir essas rivalidades que podem chegar a extremos inimagináveis, tal qual se deu entre os primeiros filhos de Eva, Caim e Abel?

 III – São João Batista e a virtude da restituição

 Aproximemo-nos de João nas margens do rio Jordão e analisemos seu prestígio de pregador. Profeta como igual nunca houve em Israel, fundador e chefe de uma escola, todo o povo o procura. Entretanto, seu renome está condenado a uma lenta morte, sua instituição deverá dissolver-se paulatinamente, sobre a glória de sua obra far-se-á um grande eclipse, pois um valor mais alto se aproxima. Esse era o momento do ressentimento, da ambição ferida e talvez até da inveja. Muito pelo contrário, a reação de João foi de heroica humildade e ilimitada servidão, como encontramos narrado no Evangelho de hoje.

 Naquele tempo: a João viu Jesus aproximar-Se dele…

   Da mesma maneira que Maria foi à sua prima Santa Isabel, é Jesus quem Se dirige a João, e agora pela segunda vez. segundo São João Crisóstomo, Jesus volta a encontrar-Se com o Batista para desfazer o equívoco de que, na primeira vez, Ele tivesse ido procurá-lo tal qual o faziam todos, ou seja, para confessar seus pecados ou para obter a purificação destes pelas águas do Jordão.

…e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”.

   Era chegado o momento de os judeus ouvirem, de lábios dignos da máxima credibilidade, a proclamação da grandeza do Messias ali presente. A preparação dos corações estava concluída, o caminho do Senhor já se encontrava endireitado, a voz ecoara pelo deserto, o Filho de Deus precisava ser conhecido e, para tal, era indispensável muita clareza na comunicação: “Eis o Cordeiro de Deus”.

   O cordeiro é um animal pacífico e pacificador. Solto no pasto ou posto na baia, ele tranquiliza os corcéis fogosos, evitando-lhes ferimentos inúteis. A afirmação de João é feita no presente do indicativo — “que tira” — para indicar a perpetuidade do ato redentor.

“D’Ele é que eu disse: ‘Depois de mim vem um Homem que passou à minha frente, porque existia antes de mim’”.

   É patente tratar-se aqui de um Homem de corpo e alma. Embora tenha nascido depois do Batista, este último confessa publicamente não só que Jesus lhe é superior, mas também que já existia antes dele. E é real, pois, enquanto Verbo de Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Ele é eterno. Assim, neste versículo, o Precursor proclama a humanidade unida à divindade, numa só Pessoa. É a revelação do mistério da Encarnação.

“Também eu não O conhecia, mas se eu vim batizar com água, foi para que Ele fosse manifestado a Israel”.

   João quis evitar o equívoco da parte do povo, o qual poderia julgar serem suas afirmações sobre Jesus feitas com base no parentesco existente entre ambos. E, na verdade, o Batista se retirara ao deserto ainda menino e não estivera com Ele antes. Portanto, suas declarações eram fruto de um discernimento fundamentalmente profético, como também é profética sua missão, pois torna claro o objetivo de seu batismo: o reconhecimento do Messias, da parte do povo.

E João deu testemunho, dizendo: “Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do Céu, e permanecer sobre Ele”.

   O mistério da Santíssima Trindade não havia sido revelado até então; no entanto, de dentro da teologia como é hoje conhecida, torna-se patente a presença das três Pessoas nessa proclamação de João Batista.

   “Também eu não O conhecia, mas Aquele que me enviou a batizar com água me disse: ‘Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo’”.

   Reafirma São João Batista não ter antes conhecido Jesus.Compreende-se sua insistência a esse respeito, pois os laços familiares eram vigorosos naqueles tempos e havia o risco de interpretarem as palavras do Precursor por um prisma meramente humano. Era indispensável fixar a atenção de todos na origem divina de suas proclamações, daí a referência Àquele que o havia mandado batizar.

“Eu vi e dou testemunho: ‘Este é o Filho de Deus!’”

   Sim, Jesus é o Unigênito do Pai. Enquanto os outros todos — inclusive a Santíssima Virgem — somos filhos adotivos, Jesus é gerado e não criado, desde toda a eternidade. João já havia declarado ser o Messias o Cordeiro de Deus, que batizaria no Espírito Santo. Porém, esta é a primeira vez que declara tratar-se especificamente do Filho de Deus.

IV – Conclusão

   O castigo de Deus à ambição e à inveja se faz presente não só na eternidade, como também nesta vida. Quem se deixa arrastar por esses vícios perde a noção do verdadeiro repouso e passa a viver todo o tempo na preocupação, na inquietude e na ansiedade. Sempre estará atormentado pelo pavor de ficar à margem, de ser esquecido, igualado ou superado. Sua existência será um inferno antecipado e essas paixões se constituirão em seus próprios carrascos.

   Pelo contrário, quanta felicidade, paz e doçura têm as almas que são despretensiosas, reconhecedoras dos bens e das qualidades alheias, restituidoras a Deus dos dons por Ele concedidos.

   Entremos na escola de Maria, e d’Ela aprendamos a restituir a Deus nosso ser, nossa família e todos os nossos haveres. Ela nos ensinará a glorificar ao Senhor por ter contemplado o nosso nada e, como resultado, nosso espírito exultará de alegria (cf. Lc 1, 47), a exemplo de seu primeiro discípulo, São João Batista.

Obra Consultada

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol II, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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