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2º Domingo da Quaresma

   São Paulo declara aos coríntios ter sido arrebatado ao Céu, em certo momento de sua vida, onde ouviu o que era impossível transmitir e menos ainda explicar: “foi arrebatado ao Paraíso e lá ouviu palavras inefáveis, que não é permitido a um homem repetir” (II Cor 12, 4).
Esse é o Céu, “o fim último e a realização de todas as aspirações mais profundas do homem, o estado de felicidade suprema e definitiva”; e essa é a glória que transparece no Tabor, ao transfigurar-Se o Senhor.

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha.

   O Divino Mestre se comprazia com o alto das montanhas, e ali procurava prodigalizar seus grandes mistérios.

   Nesse caso concreto, escolheu o Tabor talvez para simbolizar a necessidade de elevarmos nossos corações sobre as coisas deste mundo conforme as palavras de São Remígio: “Com isto o Senhor nos ensina que é necessário, para quem deseja contemplar a Deus, não se deixar atolar nos baixos prazeres, mas elevar a alma para as coisas celestiais, por meio do amor às realidades superiores.
Os comentários se multiplicam a propósito da razão de ter Jesus escolhido esses três Apóstolos para gozarem do convívio glorioso do Senhor. Um motivo claro e imediato salta logo aos olhos: estes veriam mais de perto as humilhações pelas quais passaria o Salvador. Como também era fundamental haver algumas testemunhas da glória de Jesus para sustentarem, na prova da Paixão, os Apóstolos em suas tentações.

E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o Sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz.

   No que terá consistido essa transfiguração? Evidentemente, não viram os Apóstolos a divindade do Verbo de Deus, inacessível aos olhos corporais. Viam apenas uma fímbria dos fulgores da verdadeira glória da humanidade sagrada de Jesus. É provável que fosse nada mais do que o dom da claridade da qual gozam os corpos gloriosos.

Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus.

   Esses dois grandes personagens aparecem na Transfiguração do Senhor, segundo nos assegura São João Crisóstomo, “para que se soubesse que Ele tinha poder sobre a morte e sobre a vida; por esta razão apresenta Moisés, que tinha morrido, e Elias, que ainda vivia”.

Então Pedro tomou a palavra e disse: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, e outra para Elias”.

   Pedro será confirmado em graça apenas em Pentecostes; até lá, sua loquacidade lhe confere o mérito da manifestação de fé na divindade de Jesus (cf. Mt 16, 16; Mc 8, 29; Lc 9, 20), ou o demérito da promessa temerária de jamais romper sua fidelidade (cf. Mt 26, 33-35; Mc 14, 29; Lc 22, 33; Jo 13, 37), ou da negação na casa do sumo sacerdote (cf. Mt 26, 69-74; Mc 14, 66-72; Lc 22, 55-60; Jo 18, 25-27). No Tabor, penetrado de desmedida alegria, deseja perpetuar aquela felicidade. Pedro não estava ainda suficientemente instruído pelo Espírito Santo para saber o quanto a Terra não era o ambiente para o gozo permanente. Não tinha noção de quanto as consolações são auxílios passageiros concedidos por Deus para nos estimular em seu serviço e a sofrer por Ele.

Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: “Este é o meu Filho amado, no qual Eu pus todo meu agrado. Escutai-O!”

   Nas Escrituras Sagradas, aparece algumas vezes esta ou aquela nuvem para simbolizar a presença de Deus e sua teofania. Várias são as passagens do Êxodo em que elas são utilizadas como sinais sensíveis da manifestação divina: “apareceu na nuvem a glória do Senhor!” (16, 10); “E logo que ele acabava de entrar, a coluna de nuvem descia e se punha à entrada da tenda, e o Senhor se entretinha com Moisés. À vista da coluna de nuvem, todo o povo, em pé à entrada de suas tendas, se prostrava no mesmo lugar” (33, 9-10), etc.
Se bem que sejamos verdadeiros filhos de Deus, como nos assegura o salmista — “Eu disse: Sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo” (Sl 81, 6) —, nós o somos por misericordiosa adoção. O Filho de Deus por natureza é um só: “O Filho de Deus veio e nos deu entendimento e luz para conhecer ao verdadeiro Deus” (I Jo 5, 20).

Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra.

   São Jerônimo procura nos explicar as razões desta queda dos Apóstolos: “Por três motivos caíram aterrorizados: porque compreenderam seu erro, porque ficaram envolvidos pela nuvem luminosa e porque ouviram a voz de Deus que lhes falava. E não podendo a fragilidade humana suportar tamanha glória, ela se estremece com todo o seu corpo e toda a sua alma, e cai por terra: pois o homem que não conhece sua medida, quanto mais queira elevar-se até as coisas sublimes, mais desliza até as baixas”.

Jesus Se aproximou, tocou neles e disse: “Levantai-vos, e não tenhais medo”.

   Além da onipotência de sua presença e de sua voz, Jesus quis tocá-los com sua própria mão. Esse fato nos faz recordar aquela passagem de Daniel: “uma mão me tocou, e fez com que me erguesse sobre os joelhos e as palmas das mãos” (10, 10). Tornou-se evidente para eles o quanto essa força partia de Jesus e não da natureza deles.

Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus.

   Desaparecem de seus olhos a Lei e os profetas. Agora entendem experimentalmente o quanto Jesus é o Esperado das Nações.

Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes: “Não conteis a ninguém esta visão, até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos”.

   Até mesmo no alto do Tabor terminam as alegrias, como sempre ocorre nesta Terra de exílio. É necessário descerem do monte todos aqueles que, ademais, são chamados à vida ativa.
E não deviam dizer nada a ninguém, “porque se fosse divulgada ao povo a majestade do Senhor, este mesmo povo se oporia aos príncipes dos sacerdotes e impediria a Paixão, e assim se retardaria a Redenção do gênero humano”.

   “Sou demasiadamente grande, e meu destino por demais nobre, para que eu me torne escravo de meus sentidos”. Esta foi a conclusão à qual chegou Sêneca por mera elaboração filosófica, sem ter a menor revelação de algo análogo à Transfiguração do Senhor. No Tabor, Jesus Cristo vai muitíssimo além: em sua divina didática, faz-nos conhecer uma parcela de sua glória nos reflexos da claridade própria a seu Corpo após a Ressurreição. Pálida exemplificação do que veremos no Céu, como fruto dos méritos de sua Paixão, dos fulgores de sua visão beatífica e da união hipostática. Como objetivo imediato, quis Ele fortalecer seus discípulos para assumirem com heroísmo as tristes provações de sua Paixão e Morte, à margem da manifestação de sua divindade. Porém, não era alheio aos seus divinos desígnios deixar consignado para a História quais são as verdadeiras e reais alegrias reservadas aos justos, post mortem.

  No Tabor a voz do Pai proclama: “Escutai-O!”. Esta recomendação se dirige sobretudo a nós, batizados, pois somos filhos adotivos de Deus e, portanto, já passamos por uma imensa transformação quando ascendemos à ordem sobrenatural, deixando de ser exclusivamente puras criaturas

   Confiemos nessa promessa com base nas garantias da Transfiguração do Senhor e peçamos à Mãe da Divina Graça que bondosamente nos auxilie com os meios sobrenaturais a chegarmos incólumes, decididos e seguros ao bom porto da eternidade: o Céu.

  Obra consultada:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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7º Domingo do Tempo Comum

   No Evangelho de São Mateus o Sermão da Montanha ocupa três capítulos inteiros, e a Santa Igreja de tal forma valoriza esta pregação do Divino Mestre que lhe destinou seis domingos consecutivos do presente Ciclo Litúrgico, a fim de nos permitir considerá-la com maior profundidade e proveito espiritual.

   É no Evangelho deste 7º Domingo do Tempo Comum, entretanto, que se encontra o cerne de todo o Sermão da Montanha, o qual nos indica a via segura para atingirmos a santidade. No que consiste ser santo? Em alcançar a ousada meta traçada pelo Divino Mestre: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”.

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:  “Vós ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’  Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda!”

   Já tivemos ocasião de explicar como a lei de talião vigorava na Antiguidade. Podemos encontrá-la no Código de Hamurabi ― escrito por volta de 1750 a.C.,na Babilônia ―, tendo sido, inclusive, incorporada ao Direito Romano. Vale recordar vir o termo talião do latim talis, significando tal ou igual. Ou seja, o revide deveria ser proporcionado à ofensa.

   Também a legislação mosaica a empregava, como lemos no Livro do Êxodo: “urge dar vida por vida, olho por olho, dente  por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe” (21, 23-25). Se bem que, no início, a aplicação desta lei competisse apenas à legítima autoridade, mais tarde, com a decadência dos costumes, os particulares começaram a fazer justiça pelas próprias mãos e segundo seu critério, praticando atrozes represálias contra os adversários. É, pois, para premunir seus discípulos contra sentimentos de rancor que Nosso Senhor afirma: “se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda!”.

“Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto!”

   Naquele tempo era comum a posse de várias túnicas, mas só um ou dois mantos. Este último era reputado indispensável, o traje por excelência, mais valioso do que a própria túnica. Com efeito, vemos a preocupação de São Paulo em pedir a Timóteo, em uma de suas epístolas, a capa que havia deixado “em Trôade na casa de Carpo” (II Tim 4, 13). Segundo a Lei judaica, quem tomava o manto do próximo como penhor de empréstimo, não podia retê-lo até o dia seguinte e estava obrigado a devolvê-lo antes do pôr do Sol (cf. Ex 22, 26), porque faria muita falta ao proprietário. Assim, ao dizer que entreguemos “também o manto” a quem nos quiser tomar a túnica, Nosso Senhor nos recomenda o mais completo desapego dos bens terrenos e que nossas almas estejam livres de qualquer volúpia de posse.

“Se alguém te forçar a andar um quilômetro, caminha dois com ele!”

   Às vezes, os soldados romanos ou outros funcionários do governo requisitavam a ajuda de alguém para lhes servir de guia ou para outro trabalho, como aconteceu a Simão de Cirene, “que voltava do campo, e impuseram-lhe a Cruz para que a carregasse atrás de Jesus” (Lc 23, 26). Naturalmente, quando um imprevisto semelhante ocorria, muitos se queixavam e até se recusavam a atender ao pedido. Para nos ensinar o valor da caridade, diz Nosso Senhor: “Caminha dois quilômetros com ele!”. Ou seja, desde que esteja a seu alcance, faça de bom grado até mais do que lhe for solicitado.

“Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pede emprestado”.

   É preciso que nós cedamos sempre e demos tudo o que nos pedirem? Se este princípio fosse transformado em lei, a sociedade tornar-se-ia um caos em razão de incontáveis abusos. Não pode ser esta, portanto, a intenção de Nosso Senhor. Deseja Ele que nos esqueçamos de nós mesmos, preocupando-nos com as privações alheias, e que estejamos limpos de qualquer interesse e pragmatismo.

“Vós ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!’”

   Verdadeiro Legislador, Nosso Senhor Jesus Cristo vai retificar as interpretações falseadas da Lei de Moisés, que a alteravam e empobreciam, para dar nova plenitude aos Mandamentos e ensinamentos antigos.Ele mostra quão vazia é, em contraposição ao Evangelho, a moral das exterioridades criada pelos fariseus.

“Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem!”

   Se queremos ser filhos de Deus, precisamos ter uma completa isenção de ânimo em relação aos inimigos e rezar por eles.

   Por certo, não se deve ser indolente e permitir aos adversários da Igreja agirem livremente contra Ela, implantando ainiquidade na Terra. Se é obrigação amar os inimigos, é mister também odiar o pecado! Cumpre, pois, pedir a intervenção divina para fazer cessar o mal e empregar todos os meios ― sempre conforme a Lei de Deus e a dos homens ― para que este não prevaleça no mundo.

“Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos Céus, porque Ele faz nascer o Sol sobre os maus e os bons e faz cair a chuva sobre os justos e injustos”.

   O Pai que está nos Céus derrama as suas graças sobre todos, inclusive sobre os miseráveis e os malfeitores.

   Sendo esta a vontade do Pai, cabe-nos trabalhar com ardor, não apenas pela salvação de todos os que lutam neste valede lágrimas, mas ainda acelerar, com nossas preces e sacrifícios, a libertação das almas que padecem no Purgatório.

“Porque se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os cobradores de impostos não fazem amesma coisa? E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa?”

   A insuperável didática do Divino Mestre nos leva a compreender facilmente através destas duas confrontações que  amar os amigos e benfeitores nada tem de extraordinário. O mérito está em querer o bem até dos que nos atacam, roubam ouinjuriam.

   A esse respeito, esclarece Santo Agostinho: “Só a caridade  distingue os filhos de Deus dos do demônio. Persignem-se todoscom o sinal da Cruz de Cristo; respondam todos: Amém; cantem todos: Aleluia; batizem-se todos; frequentem a igreja, apinhem- -se nas basílicas; não se distinguirão os filhos de Deus dos do demônioa não ser pela caridade. […] Tens tudo o que quiseres; se te falta só a caridade, de nada te aproveita tudo o que tiveres”

   Jesus nos convida a segui-Lo pelas vias heroicas da caridade, da paciência e do perdão máximo, rápido e total. Por este motivo não podemos guardar ressentimento contra ninguém, mas devemosesquecer a priori qualquer ofensa pessoal.

“Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito!”

   Jesus formula, com uma  clareza insofismável, a meta e o objetivo de nossa vida: imitar o Pai celeste, modelo absoluto de santidade, adequando a Ele nossa mentalidade, inclinações e desejos. Mas como seremos perfeitos como Deus é perfeito?

   A vida sobrenatural em nós é passível de crescimento, na medida em que rezemos, nos esforcemos na prática da virtude evitando as ocasiões de pecado e frequentemos os Sacramentos. Mais que em outras épocas históricas, vivemos cercados de perigos que ameaçam nossa perseverança. Para resistir a todas essas solicitações do demônio, do mundo e da carne, é indispensável alimentar um grande desejo de alcançar o heroísmo da perfeição.

   No Céu nos está reservado um lugar que poderemos ocupar com mais ou menos brilho, dependendo da fidelidade com que busquemos ser “perfeitos como o nosso Pai celeste é perfeito”. A conhecida máxima de Paul Claudel, “a juventude não foi feita para o prazer, mas sim para o heroísmo”, na realidade está incompleta, pois o heroísmo em matéria de virtude não é uma obrigação exclusiva dos jovens, mas de todos os homens, sem exceção.

 

Obra consultada:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol II, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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2º Domingo do Tempo Comum

 I – Um dos mais belos encontros da História

   “O semelhante se alegra com seu semelhante”, diz um antigo provérbio latino. Ora, se grande é o júbilo de duas crianças afins ao se encontrarem pela primeira vez no colégio, qual não terá sido a reação dos dois maiores homens de todos os tempos, ao se contemplarem face a face?

   Assim se realizou um dos mais belos encontros da História, João Batista diante de Jesus; para melhor compreendê-lo, analisemos as analogias entre um e outro.

   Apesar de serem duas pessoas infinitamente distantes entre si pela natureza — João é mero homem, Jesus é a Segunda Pessoa da Trindade Santíssima —, numerosos traços de semelhança os unem.

   Jesus é o Alfa e o Ômega da História. João é o começo do Evangelho e o fim da Antiga Lei.1 Isto o afirma o próprio Nosso Senhor: “Porque os profetas e a Lei tiveram a palavra até João”

   Além do mais, a concepção de ambos, de Jesus e de João, é precedida pelo anúncio do mesmo embaixador, São Gabriel Arcanjo (cf. Lc 1, 11-19.26-35). As mensagens não diferem muito, em seus termos, uma da outra. Os nomes de Jesus e de João foram designados por Deus (cf. Lc 1, 13.31).
No próprio ato de anunciar o nascimento, o mensageiro celeste profetiza também o futuro tanto do Precursor (cf. Lc 1, 14-17) quanto do Messias (cf. Lc 1, 32-33).

   “João andava vestido de pelo de camelo […], e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre”. João atraiu multidões: “E saíam para ir ter com ele toda a Judeia, toda Jerusalém” (Mc 1, 5), “porque todos julgavam ser João deveras um profeta” (Mc 11, 32).

   As repercussões sobre sua figura, palavras e obras ecoaram entre os vales e os montes da Terra Prometida, a ponto de o povo chegar a pensar que “talvez João fosse o Cristo” (Lc 3, 15). Pois bem, fixemos em nossa lembrança essa gloriosa projeção alcançada em vida por São João Batista e abramos um parênteses para considerar a principal de suas virtudes: a da restituição, a qual consiste essencialmente em atribuir a Deus os dons d’Ele recebidos.

II – Inveja e ambição, vícios universais

   A ambição é uma paixão tão universal quanto o é a vida humana. Quase se poderia dizer que ela se instala na alma antes mesmo do uso da razão, sendo discernível com facilidade no modo de a criança agarrar seu brinquedo ou na ânsia de ser protegida.

   O desejo de ser conhecida e estimada é a primeira paixão que macula a inocência batismal. Quantos de nós não nos lançamos nos abismos da ambição, da inveja e da cobiça já nos primeiros anos de nossa infância? Essas provavelmente foram as raízes dos ressentimentos que tenhamos tido a propósito da glória dos outros. Sim, pelo fato de desejarmos a estima de todos, por nos crermos no direito à glória e ao louvor dos nossos circunstantes, constitui para nós uma ofensa o sucesso dos outros. Por isso São Tomás define a inveja como sendo a tristeza sentida porque “o bem do outro é considerado um mal pessoal na medida em que diminui nossa glória e nossa excelência”.

   Há paixões que se mantêm letárgicas até a adolescência, e assim não o é a inveja; ela se manifesta já na infância e acompanha o homem até a hora de sua morte. Quantas vezes não acontece de ser necessário separar-se irmãos, ou irmãs, na tentativa de corrigir essas rivalidades que podem chegar a extremos inimagináveis, tal qual se deu entre os primeiros filhos de Eva, Caim e Abel?

 III – São João Batista e a virtude da restituição

 Aproximemo-nos de João nas margens do rio Jordão e analisemos seu prestígio de pregador. Profeta como igual nunca houve em Israel, fundador e chefe de uma escola, todo o povo o procura. Entretanto, seu renome está condenado a uma lenta morte, sua instituição deverá dissolver-se paulatinamente, sobre a glória de sua obra far-se-á um grande eclipse, pois um valor mais alto se aproxima. Esse era o momento do ressentimento, da ambição ferida e talvez até da inveja. Muito pelo contrário, a reação de João foi de heroica humildade e ilimitada servidão, como encontramos narrado no Evangelho de hoje.

 Naquele tempo: a João viu Jesus aproximar-Se dele…

   Da mesma maneira que Maria foi à sua prima Santa Isabel, é Jesus quem Se dirige a João, e agora pela segunda vez. segundo São João Crisóstomo, Jesus volta a encontrar-Se com o Batista para desfazer o equívoco de que, na primeira vez, Ele tivesse ido procurá-lo tal qual o faziam todos, ou seja, para confessar seus pecados ou para obter a purificação destes pelas águas do Jordão.

…e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”.

   Era chegado o momento de os judeus ouvirem, de lábios dignos da máxima credibilidade, a proclamação da grandeza do Messias ali presente. A preparação dos corações estava concluída, o caminho do Senhor já se encontrava endireitado, a voz ecoara pelo deserto, o Filho de Deus precisava ser conhecido e, para tal, era indispensável muita clareza na comunicação: “Eis o Cordeiro de Deus”.

   O cordeiro é um animal pacífico e pacificador. Solto no pasto ou posto na baia, ele tranquiliza os corcéis fogosos, evitando-lhes ferimentos inúteis. A afirmação de João é feita no presente do indicativo — “que tira” — para indicar a perpetuidade do ato redentor.

“D’Ele é que eu disse: ‘Depois de mim vem um Homem que passou à minha frente, porque existia antes de mim’”.

   É patente tratar-se aqui de um Homem de corpo e alma. Embora tenha nascido depois do Batista, este último confessa publicamente não só que Jesus lhe é superior, mas também que já existia antes dele. E é real, pois, enquanto Verbo de Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Ele é eterno. Assim, neste versículo, o Precursor proclama a humanidade unida à divindade, numa só Pessoa. É a revelação do mistério da Encarnação.

“Também eu não O conhecia, mas se eu vim batizar com água, foi para que Ele fosse manifestado a Israel”.

   João quis evitar o equívoco da parte do povo, o qual poderia julgar serem suas afirmações sobre Jesus feitas com base no parentesco existente entre ambos. E, na verdade, o Batista se retirara ao deserto ainda menino e não estivera com Ele antes. Portanto, suas declarações eram fruto de um discernimento fundamentalmente profético, como também é profética sua missão, pois torna claro o objetivo de seu batismo: o reconhecimento do Messias, da parte do povo.

E João deu testemunho, dizendo: “Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do Céu, e permanecer sobre Ele”.

   O mistério da Santíssima Trindade não havia sido revelado até então; no entanto, de dentro da teologia como é hoje conhecida, torna-se patente a presença das três Pessoas nessa proclamação de João Batista.

   “Também eu não O conhecia, mas Aquele que me enviou a batizar com água me disse: ‘Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo’”.

   Reafirma São João Batista não ter antes conhecido Jesus.Compreende-se sua insistência a esse respeito, pois os laços familiares eram vigorosos naqueles tempos e havia o risco de interpretarem as palavras do Precursor por um prisma meramente humano. Era indispensável fixar a atenção de todos na origem divina de suas proclamações, daí a referência Àquele que o havia mandado batizar.

“Eu vi e dou testemunho: ‘Este é o Filho de Deus!’”

   Sim, Jesus é o Unigênito do Pai. Enquanto os outros todos — inclusive a Santíssima Virgem — somos filhos adotivos, Jesus é gerado e não criado, desde toda a eternidade. João já havia declarado ser o Messias o Cordeiro de Deus, que batizaria no Espírito Santo. Porém, esta é a primeira vez que declara tratar-se especificamente do Filho de Deus.

IV – Conclusão

   O castigo de Deus à ambição e à inveja se faz presente não só na eternidade, como também nesta vida. Quem se deixa arrastar por esses vícios perde a noção do verdadeiro repouso e passa a viver todo o tempo na preocupação, na inquietude e na ansiedade. Sempre estará atormentado pelo pavor de ficar à margem, de ser esquecido, igualado ou superado. Sua existência será um inferno antecipado e essas paixões se constituirão em seus próprios carrascos.

   Pelo contrário, quanta felicidade, paz e doçura têm as almas que são despretensiosas, reconhecedoras dos bens e das qualidades alheias, restituidoras a Deus dos dons por Ele concedidos.

   Entremos na escola de Maria, e d’Ela aprendamos a restituir a Deus nosso ser, nossa família e todos os nossos haveres. Ela nos ensinará a glorificar ao Senhor por ter contemplado o nosso nada e, como resultado, nosso espírito exultará de alegria (cf. Lc 1, 47), a exemplo de seu primeiro discípulo, São João Batista.

Obra Consultada

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol II, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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Solenidade de Cristo Rei do Universo

O ano litúrgico chega ao seu final.
Passamos pelo Advento onde ouvimos: “Eis que o Rei há de vir, Senhor da terra, ele mesmo de nós afastará o jugo de nosso cativeiro” (aclamação ao Evangelho da 2ª feira da Segunda semana do Advento). Logo depois, nas alegrias do Natal a Igreja cantou na vigília da noite santa: “Nasceu para nós um menino, um filho dos foi dado. Ele trás nos ombros as insígnias da realeza”. Na epifania a pergunta dos reis magos ecoou em nossos corações: “Onde está o Rei dos judeus que nasceu?” (Mt 2,2).
Durante a paixão, no Domingo de Ramos a liturgia cantou: “Glória, louvor, honra a ti, ó Cristo Rei, redentor”. Finalmente no tempo pascal pudemos contemplar o Rei da eterna glória que subindo aos céus sentou-se em seu trono, a direita do Pai.
Após todos estes dias a Solenidade de Cristo Rei encerra o ano litúrgico e dá a nota final da realeza de Nosso Senhor. Tal solenidade foi instituída em 1925 pelo Papa Pio XI com a encíclica Quas Primas.
Comentando tal data, Pio XII assim se expressou: “No começo do caminho que conduz à indigência espiritual dos tempos presentes, estão os nefastos esforços de não poucos de destronar a Cristo, o afastamento da lei da verdade que Ele anunciou, da lei do amor, alento vital de seu Reino. O reconhecimento dos direitos reais de Cristo e a volta a lei de sua verdade e de seu amor são a única via de salvação!” (Encíclica Summi Pontificatus).

No sexto volume da coleção “O inédito sobre os Evangelhos” de Mons. João Clá Dias, Fundador e presidente geral dos Arautos do Evangelho, o autor abre diante de nós o verdadeiro significado da realeza do Rei dos reis e Senhor dos senhores.

I – Rei no tempo e na eternidade

Ao ouvirmos este Evangelho da Paixão, de imediato surge em nosso interior uma certa perplexidade: por que a Liturgia, para celebrar uma festa tão grandiosa como a de Cristo Rei, terá escolhido um texto todo ele feito de humilhação, blasfêmia e dor?

Apesar de as exterioridades nos causarem uma impressão enganosa, Ele é o Senhor Supremo de todos os seres criados e até dos criáveis. Porém, diante de Pilatos, assevera: “O meu Reino não é deste mundo” (Jo 18, 36), porque não quer manifestar seu império em todas as suas proporções, a não ser por ocasião do Juízo Final.

Assim, enquanto o Evangelho nos fala de seu Reinado terreno, a Epístola proclama o triunfo de sua glória eterna. No tempo, vemo-Lo exangue, pregado na Cruz entre dois ladrões. A Liturgia exige de nós um esforço de fé para, indo além do fracasso e da humilhação, crermos na grandiosidade do Reino de Jesus.


II – A realeza absoluta de Cristo

Rei por direito de herança: Ele é o unigênito Filho de Deus e por Este foi constituído como herdeiro universal, recebendo o poder sobre toda a criação, no mesmo dia em que foi engendrado (cf. Hb 1, 2-5).
Rei por ser Homem-Deus: Por outro lado, Jesus Cristo é Deus e, assim sendo, tudo foi feito por ele, o Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. Aí está um Governo incomparável, superior a qualquer imaginação, e do qual ninguém ou nada poderá se subtrair.
O título de Rei Lhe cabe mais apropriadamente do que às outras duas Pessoas da Trindade Santíssima. De fato, o título de Rei, quando aplicado ao Pai, é usado de forma alegórica para indicar seu domínio supremo. E se quisermos atribuí-lo ao Espírito Santo, faltará exatidão jurídica, por tratar-se Ele de Deus não encarnado, pois, para ser Rei dos homens é indispensável ser homem. Deus não encarnado é Senhor, Deus feito homem é o Rei.
Rei por direito de conquista: Jesus Cristo é nosso Rei também por direito de conquista, por nos ter resgatado da escravidão a satanás. Ao adquirirmos um objeto às custas de nosso dinheiro, ele nos pertence por direito. Mais ainda se o obtivermos através de duras penas, pelos esforços de nosso trabalho, e muito mais, se for conseguido pelo alto preço de nosso sangue. E não fomos nós comprados pelo trabalho, sofrimentos e pela própria morte de Nosso Senhor Jesus Cristo? É São Paulo quem nos assevera: “Porque fostes comprados por um grande preço!” (I Cor 6, 20).
Rei por aclamação: Cristo é nosso Rei por aclamação. Antes mesmo das purificadoras águas do Batismo serem derramadas sobre nossa cabeça, nós O elegemos para ser o regente de nossos corações e de nossas almas, através dos lábios de nossos padrinhos. Por ocasião da Crisma e a cada Páscoa, de viva voz nós renovamos essa eleição, sempre de um modo solene.
Rei do interior dos homens e de todas as exterioridades: Não houve, nem jamais haverá um só monarca dotado da capacidade de governar o interior dos homens, além de bem conduzi-los na harmonia de suas relações sociais, seus empreendimentos, etc. O único Rei pleníssimo de todos os poderes é Cristo Jesus.

Exteriormente, pelo seu insuperável e arrebatador exemplo — além de suas máximas, revelações e conselhos — Ele governa os povos de todos os tempos, tendo marcado profundamente a História com sua Vida, Paixão, Morte e Ressurreição. Por meio do Evangelho e sobretudo ao erigir a Santa Igreja, Mestra infalível da verdade teológica e moral, Jesus perpetua até o fim dos tempos o imorredouro tesouro doutrinário da fé.

Aqui precisamente se encontra o principal de seu governo neste mundo: o Reino sobrenatural que é realizado, na sua essência, através da graça e da santidade.

O Reinado de Cristo, em nosso interior, se estabelece pela participação na vida de Jesus Cristo. É através da graça que nossa alma se transforma num verdadeiro trono e, ao mesmo tempo, cetro de Nosso Senhor Jesus Cristo.

E qual o principal adversário contra esse Reino de Cristo sobre as almas? O pecado! Por isso mesmo, se alguém tem a desgraça de cometê-lo, nada fará de melhor do que procurar um confessionário e com arrependimento ali declará-lo a fim de ver-se livre da inimizade de Deus. É impossível gozar de alegria com a consciência atravessada pelo aguilhão de uma culpa. Nessa consciência não reinará Cristo; e se ela não se reconciliar com Deus, aqui na Terra, tampouco reinará com Ele na glória eterna.

IV – Se Cristo é Rei, Maria é Rainha

O Verbo assumiu de Maria Santíssima nossa humanidade, e assim adquiriu a condição jurídica necessária para ser chamado Rei, com toda a propriedade. Foi também nesse mesmo ato que Nossa Senhora passou a ser Rainha. Uma só solenidade nos trouxe um Rei e uma Rainha.

V – Conclusão

Tenhamos sempre bem presente que só pelos méritos infinitos da Paixão de Cristo e auxiliados pela poderosa mediação da Santíssima Virgem nos tornaremos dignos de entrar no Reino. Seguindo os passos da conversão final do bom ladrão, poderemos esperar com confiança ouvir um dia a voz de Cristo Rei dizendo também a nós: “Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso”.

Obras consultadas:
DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol VI, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2012
ORIA, Mons. Angel Herrera, VERBUM VITAE – La Palavra de Cristo, Vol VIII, BAC, Madrid, 1954
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