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3º Domingo da Quaresma

Naquele tempo, Jesus chegou a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto de um terreno que Jacó tinha dado ao seu filho José. 6a Era aí que ficava o poço de Jacó.

   O Livro do Gênesis nos relata alguns poços mandados escavar por Isaac (cf. Gn 26, 18-32). Acostumados nós, hoje, com a água encanada, não fazemos ideia da fundamental importância de uma fonte, ou de um poço, no Oriente daqueles tempos. Este, em concreto, havia sido escavado certamente com o fim de evitar a contaminação com as águas dos vizinhos cananeus, pois nas cercanias havia algumas generosas fontes.

Cansado da viagem, Jesus sentou-Se junto ao poço. Era por volta de meio-dia.

   Um dos Padres da Igreja que, com voo de águia, tratou belamente do assunto foi Santo Agostinho:

   “Não é em vão que Jesus Se fatiga, não Se cansa sem motivo a fortaleza de Deus, não Se fatiga sem causa Aquele por quem os fatigados retomam as forças. Não é em vão que Se fatiga Aquele cuja ausência nos cansa e cuja presença nos conforta.

   “[…] Jesus é forte e, ao mesmo tempo, débil. Queres ver quão forte é este Filho de Deus? ‘Tudo se fez por Ele, e sem Ele nada se fez’ (Jo 1, 3). E tudo foi feito sem cansaço. Queres agora conhecer sua debilidade? ‘O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós’ (Jo 1, 14). A fortaleza de Cristo te criou, e a debilidade deCristo te recriou.

Chegou uma mulher da Samaria para tirar água. Jesus lhe disse:“Dá-Me de beber”.

   Segundo Santo Agostinho, o fato de tratar-se de uma mulher simboliza de algum modo a fundação da Igreja. A samaritana seria a representação da instituição que nasceria do sagrado costado de Nosso Senhor Jesus Cristo.

   Quanto ao fato de não ser ela judia, o grande Doutor interpreta como sendo uma referência aos gentios dos quais nasceriaa Igreja: “era figura da Igreja, que se formaria dos gentios, gente estranha aos judeus”.

   O Senhor lhe pede água. Será apenas física sua sede? Trata-se do mesmo “tenho sede” (Jo 19, 28), pronunciado por Ele no alto da Cruz; seu grande anseio é redimir o gênerohumano e, neste caso, quer salvar aquela alma.

   Nosso Senhor costuma agir adaptando-Se aos modos de ser de cada um. Para Natanael Ele dirá que o viu debaixo de uma figueira (cf. Jo 1, 48); para André e João será uma proclamação sobre o Cordeiro de Deus (cf. Jo 1, 35-37); para os ReisMagos era a estrela aparecida no Oriente (cf. Mt 2, 2). Para esta mulher Ele pede água. Quão misteriosa é a bondade de Deus!

Os discípulos tinham ido à cidade para comprar alimentos.

   Jesus quis de fato estar a sós. Nada Lhe custaria conservar alguns Apóstolos consigo, e Lhe bastaria uma insinuação, indicando o desejo de que alguns O acompanhassem, para ser atendido com alegria.

   A mulher samaritana disse então a Jesus: “Como é que Tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?” De fato, os judeus não se dão com os samaritanos.

   A correspondência a esse primeiro chamado de Nosso Senhor poderia condicionar a perseverança dela e até mesmo sua salvação, porém sua reação foi a de levantar obstáculo. Jesus, contudo, não desistirá de chamá-la à conversão.

Respondeu-lhe Jesus: “Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é que te pede: ‘Dá-Me de beber’, tu mesma Lhe pedirias aEle, e Ele te daria água viva”.

   Didática insuperável, perfeitíssima. É bem conhecida a curiosidade feminina e é desta que Jesus procura tirar partido.

   São duas sedes de teor distinto que acometem o Divino Mestre. Jesus necessita da água comum e corrente, mas sua sede de converter  aquela alma é incomparavelmente maior, e essa é a razão pela qual  Ele procura despertar um interesse, todo feito de fé, no interior de sua interlocutora.

A mulher disse a Jesus: “Senhor, nem sequer tens balde e o  poço é fundo. De onde vais tirar a água viva? Por acaso, és maior que nosso pai Jacó, que nos deu o poço e que dele bebeu, como também seus filhos e seus animais?”

   A partir deste curto diálogo, passa a tratá-Lo de “Senhor”, pois algo do mistério de Jesus ela já entrevê, o que significa um enorme passo para uma samaritana na consideração de um judeu.

   Ela não chega a entender bem a substância das afirmações feitas por Jesus, mas decerto já estava atraída pelo todo do Divino Mestre, e por isso não as contradiz, apenas externa sua perplexidade, disposta a aceitar uma explicação.

   Os samaritanos tinham a ufania de declarar ter sido sua terra habitada pelos patriarcas (cf. Gn 12, 6; 33, 18; 35, 4; 37, 12; etc.). Pretendiam com isso abrandar as abjeções que os judeus lhes tinham, oriundas da miscigenação de raça e de religião. Daí a lembrança do poço de Jacó.

Respondeu Jesus: “Todo aquele que bebe desta água terá sede de novo. Mas quem beber da água que Eu lhe darei, esse nunca mais terá sede. E a água que Eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna”.

   Deus criou o homem com sede de infinito. Nossa alma só repousa em Deus, pois Ele é nosso fim último, e nada fora d’Ele nos satisfaz plenamente.

   Sem desprezar em nada a memória de Jacó, Jesus oferece à samaritana uma água extraordinariamente superior àquela do patriarca. Mais ainda, Ele promete “uma fonte de água que jorra para a vida eterna”.

A mulher disse a Jesus: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede e nem tenha de vir aqui para tirá-la”.

   Com a fé mais robustecida, ela crê no poder de Deus em criar uma água capaz de eliminar definitivamente a sede e, em consequência, de dispensá-la do trabalho de retirar daquele poço a água de todos os dias. De si, já seria uma maravilha criar essa água, masJesus lhe fala de um prodígio maior e incomparável: o das águas da graça. “O bem da graça é, para o indivíduo, melhor que o da natureza de todo o universo”, afirma São Tomás de Aquino.

   Santo Agostinho glosa este versículo, mostrando que há tão só uma água capaz de extinguir a sede por completo, por fazer brotar no nosso interior uma fonte permanente, que jorrará até o feliz dia de nossa entrada para a eternidade. Se pedíssemos a Jesus, tal qual a samaritana o fez: “Senhor, dá-me dessa água”, Ele nos responderia: “Se alguém tiver sede, venha a Mim e beba. Quem crê em Mim, como diz a Escritura: ‘Do seu interior manarão rios de água viva’. Dizia isso, referindo-Se ao Espírito que haviam de receber os que cressem n’Ele” (Jo 7, 37-39). No entanto, num primeiro momento, ela ainda não alcança o verdadeiro sentido das palavras de Nosso Senhor. A essa mulher se aplica o que diz São Paulo: “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus”

   A samaritana, apesar de não ter vida virtuosa e de ser uma estrangeira, com todas as implicações da Lei, possuía uma alma penetrada por comovedora simplicidade, verdadeiramente cândida. Seu modo de ser é humilde e despretensioso. É cumpridora de suas obrigações e conhecedora dos princípios e tradições de sua religião. Sua conversa é elevada e sincera, como quando manifestou o quanto acreditava em Jesus. Essas qualidades atraíram o amor do Redentor e O fizeram ir em busca da ovelha perdida.

  Na ciência ou na ignorância, na virtude ou no pecado, o fundamental é buscarmos a água da vida, nas fontes da Santa Igreja. É indispensável não nos apegarmos a certos conhecimentos que possamos ter adquirido e, desta forma, fugirmos do orgulho da ciência. Ou então assumirmos a simplicidade de espírito e humildade de coração da samaritana, ainda que, infelizmente, estejamos dentro de uma via pecaminosa como a dela.

   Em síntese, roguemos, de modo especial neste domingo, à Santíssima Virgem para que nos obtenha de seu Divino Filho a água da vida, fazendo jorrar em nossos corações o líquido precioso da graça que nos conduz à morada eterna.

Obra consultada

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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2º Domingo da Quaresma

   São Paulo declara aos coríntios ter sido arrebatado ao Céu, em certo momento de sua vida, onde ouviu o que era impossível transmitir e menos ainda explicar: “foi arrebatado ao Paraíso e lá ouviu palavras inefáveis, que não é permitido a um homem repetir” (II Cor 12, 4).
Esse é o Céu, “o fim último e a realização de todas as aspirações mais profundas do homem, o estado de felicidade suprema e definitiva”; e essa é a glória que transparece no Tabor, ao transfigurar-Se o Senhor.

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha.

   O Divino Mestre se comprazia com o alto das montanhas, e ali procurava prodigalizar seus grandes mistérios.

   Nesse caso concreto, escolheu o Tabor talvez para simbolizar a necessidade de elevarmos nossos corações sobre as coisas deste mundo conforme as palavras de São Remígio: “Com isto o Senhor nos ensina que é necessário, para quem deseja contemplar a Deus, não se deixar atolar nos baixos prazeres, mas elevar a alma para as coisas celestiais, por meio do amor às realidades superiores.
Os comentários se multiplicam a propósito da razão de ter Jesus escolhido esses três Apóstolos para gozarem do convívio glorioso do Senhor. Um motivo claro e imediato salta logo aos olhos: estes veriam mais de perto as humilhações pelas quais passaria o Salvador. Como também era fundamental haver algumas testemunhas da glória de Jesus para sustentarem, na prova da Paixão, os Apóstolos em suas tentações.

E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o Sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz.

   No que terá consistido essa transfiguração? Evidentemente, não viram os Apóstolos a divindade do Verbo de Deus, inacessível aos olhos corporais. Viam apenas uma fímbria dos fulgores da verdadeira glória da humanidade sagrada de Jesus. É provável que fosse nada mais do que o dom da claridade da qual gozam os corpos gloriosos.

Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus.

   Esses dois grandes personagens aparecem na Transfiguração do Senhor, segundo nos assegura São João Crisóstomo, “para que se soubesse que Ele tinha poder sobre a morte e sobre a vida; por esta razão apresenta Moisés, que tinha morrido, e Elias, que ainda vivia”.

Então Pedro tomou a palavra e disse: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, e outra para Elias”.

   Pedro será confirmado em graça apenas em Pentecostes; até lá, sua loquacidade lhe confere o mérito da manifestação de fé na divindade de Jesus (cf. Mt 16, 16; Mc 8, 29; Lc 9, 20), ou o demérito da promessa temerária de jamais romper sua fidelidade (cf. Mt 26, 33-35; Mc 14, 29; Lc 22, 33; Jo 13, 37), ou da negação na casa do sumo sacerdote (cf. Mt 26, 69-74; Mc 14, 66-72; Lc 22, 55-60; Jo 18, 25-27). No Tabor, penetrado de desmedida alegria, deseja perpetuar aquela felicidade. Pedro não estava ainda suficientemente instruído pelo Espírito Santo para saber o quanto a Terra não era o ambiente para o gozo permanente. Não tinha noção de quanto as consolações são auxílios passageiros concedidos por Deus para nos estimular em seu serviço e a sofrer por Ele.

Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: “Este é o meu Filho amado, no qual Eu pus todo meu agrado. Escutai-O!”

   Nas Escrituras Sagradas, aparece algumas vezes esta ou aquela nuvem para simbolizar a presença de Deus e sua teofania. Várias são as passagens do Êxodo em que elas são utilizadas como sinais sensíveis da manifestação divina: “apareceu na nuvem a glória do Senhor!” (16, 10); “E logo que ele acabava de entrar, a coluna de nuvem descia e se punha à entrada da tenda, e o Senhor se entretinha com Moisés. À vista da coluna de nuvem, todo o povo, em pé à entrada de suas tendas, se prostrava no mesmo lugar” (33, 9-10), etc.
Se bem que sejamos verdadeiros filhos de Deus, como nos assegura o salmista — “Eu disse: Sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo” (Sl 81, 6) —, nós o somos por misericordiosa adoção. O Filho de Deus por natureza é um só: “O Filho de Deus veio e nos deu entendimento e luz para conhecer ao verdadeiro Deus” (I Jo 5, 20).

Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra.

   São Jerônimo procura nos explicar as razões desta queda dos Apóstolos: “Por três motivos caíram aterrorizados: porque compreenderam seu erro, porque ficaram envolvidos pela nuvem luminosa e porque ouviram a voz de Deus que lhes falava. E não podendo a fragilidade humana suportar tamanha glória, ela se estremece com todo o seu corpo e toda a sua alma, e cai por terra: pois o homem que não conhece sua medida, quanto mais queira elevar-se até as coisas sublimes, mais desliza até as baixas”.

Jesus Se aproximou, tocou neles e disse: “Levantai-vos, e não tenhais medo”.

   Além da onipotência de sua presença e de sua voz, Jesus quis tocá-los com sua própria mão. Esse fato nos faz recordar aquela passagem de Daniel: “uma mão me tocou, e fez com que me erguesse sobre os joelhos e as palmas das mãos” (10, 10). Tornou-se evidente para eles o quanto essa força partia de Jesus e não da natureza deles.

Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus.

   Desaparecem de seus olhos a Lei e os profetas. Agora entendem experimentalmente o quanto Jesus é o Esperado das Nações.

Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes: “Não conteis a ninguém esta visão, até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos”.

   Até mesmo no alto do Tabor terminam as alegrias, como sempre ocorre nesta Terra de exílio. É necessário descerem do monte todos aqueles que, ademais, são chamados à vida ativa.
E não deviam dizer nada a ninguém, “porque se fosse divulgada ao povo a majestade do Senhor, este mesmo povo se oporia aos príncipes dos sacerdotes e impediria a Paixão, e assim se retardaria a Redenção do gênero humano”.

   “Sou demasiadamente grande, e meu destino por demais nobre, para que eu me torne escravo de meus sentidos”. Esta foi a conclusão à qual chegou Sêneca por mera elaboração filosófica, sem ter a menor revelação de algo análogo à Transfiguração do Senhor. No Tabor, Jesus Cristo vai muitíssimo além: em sua divina didática, faz-nos conhecer uma parcela de sua glória nos reflexos da claridade própria a seu Corpo após a Ressurreição. Pálida exemplificação do que veremos no Céu, como fruto dos méritos de sua Paixão, dos fulgores de sua visão beatífica e da união hipostática. Como objetivo imediato, quis Ele fortalecer seus discípulos para assumirem com heroísmo as tristes provações de sua Paixão e Morte, à margem da manifestação de sua divindade. Porém, não era alheio aos seus divinos desígnios deixar consignado para a História quais são as verdadeiras e reais alegrias reservadas aos justos, post mortem.

  No Tabor a voz do Pai proclama: “Escutai-O!”. Esta recomendação se dirige sobretudo a nós, batizados, pois somos filhos adotivos de Deus e, portanto, já passamos por uma imensa transformação quando ascendemos à ordem sobrenatural, deixando de ser exclusivamente puras criaturas

   Confiemos nessa promessa com base nas garantias da Transfiguração do Senhor e peçamos à Mãe da Divina Graça que bondosamente nos auxilie com os meios sobrenaturais a chegarmos incólumes, decididos e seguros ao bom porto da eternidade: o Céu.

  Obra consultada:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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1º Domingo da Quaresma

   Ninguém se conhece a si mesmo se não é tentado; nem pode ser coroado se não vence; nem vence se não peleja; nem peleja se lhe faltam inimigo e tentações”.

   A Liturgia deste 1º Domingo da Quaresma nos ensina a reconhecer a necessidade e o valor da tentação e o Evangelho nos ensina a opor resistência ao inimigo infernal, seguindo as pegadas de Nosso Senhor.

   A tentação de Jesus se deu no início de sua vida pública, logo depois de ter recebido o Batismo de São João. Estendeu-se ao longo de quarenta dias no deserto de Judá, região isolada, inóspita e habitada por feras selvagens. Segundo a tradição, Ele permaneceu em oração e rigoroso jejum numa elevação existente nas proximidades de Jericó, hoje chamada Monte da Quarentena.

Naquele tempo, Neste primeiro versículo, chama-nos especial atenção o fato de Nosso Senhor ter sido conduzido pelo Espírito Santo.o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo.

   Sua atitude nos mostra que quando somos chamados a realizar alguma obra importante devemos rezar antes, tal como a Igreja recomenda fazer, no início de todas as atividades.

   Em suma, o maligno arrastava uma forte insegurança a respeito da identidade de Cristo, e daí o interesse em tentá-Lo para descobrir quem era, na realidade.

   Quando a tentação se abate sobre nós, temos a tendência de perguntar: “Por que Deus a permite?”. Certamente para o nosso bem, caso contrário Nosso Senhor não a teria experimentado. Lembremo-nos de que Jesus é conduzido pelo Espírito Santo, e quem permite a tentação é o Pai, o qual dissera pouco antes: “Eis meu Filho muito amado em quem ponho minha afeição” (Mt 3, 17). Se o Pai manifesta sua complacência pelo Filho e, em seguida, consente em sua ida para o deserto, por que não quererá que nós, que recebemos a vida divina por meio d’Ele, sigamos o mesmo caminho?

Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso, teve fome.

   O recolhimento de Nosso Senhor no deserto atinge seu auge ao cabo de quarenta dias, e é esse o momento escolhido por satanás para tentá-Lo de forma particular, o que novamente encerra um ensinamento, pois muitas vezes as piores provações se abatem sobre nós nas melhores fases da vida espiritual.

Então, o tentador aproximou-se e disse a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães!”

   Observam os exegetas que o deserto onde Nosso Senhor Se encontrava tinha pedras de aspecto muito aprazível, com formato arredondado e cor dourada, parecido ao dos deliciosos pães ázimos consumidos naquele tempo no Oriente.

   Eis a tática empregada pelo anjo das trevas na hora da tentação: começa por excitar a sensibilidade. Ao agir assim, atinge grande número de almas, sobretudo fomentando o interesse pelos bens materiais. Estes, e em especial o dinheiro, são simbolizados pela pedra e pelo pão, e constituem o maior empecilho para a santificação dos que põem sua esperança nos valores deste mundo.

Mas Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’”.

   Tomando uma atitude radical, Ele cortou a conversa com o demônio. Como podemos comprovar nesta e nas tentações seguintes, suas respostas são taxativas, dadas com a nítida intenção de encerrar o colóquio. Além disso, o argumento utilizado por Jesus baseia-se na autoridade da Escritura, contra a qual não há recurso. 

   Reconhece a necessidade do alimento e até do dinheiro, porém, ensina que devem ser utilizados com a primeira atenção posta em Deus. Seu divino exemplo é de desprendimento das coisas concretas.

Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-O sobre a parte mais alta do Templo, e Lhe disse: “Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus Anjos a teu respeito, e eles Te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”. Jesus lhe respondeu: “Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus!’” 

   Nesta tentação o demônio propunha uma caricatura da Religião verdadeira, excluindo o papel da dor, do sacrifício e do caminho autêntico para a santidade. 

   A resposta admite dois sentidos, para confundir o diabo e dar a conversa, mais uma vez, por concluída: “Não me tentes porque Eu sou Deus” ou “Eu não posso fazer isto, porque seria tentar a Deus”. Nós, porém, podemos interpretá-la como um ensinamento a respeito da resignação que deve caracterizar o nosso relacionamento com Jesus. É lícito pedirmos milagres e até manifestações grandiosas, mas cientes de que se não formos atendidos a nossa fé tem de permanecer intacta. 

Novamente, o diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e sua glória, e Lhe disse: “Eu Te darei tudo isso, se Te ajoelhares diante de mim, para me adorar”. Jesus lhe disse: “Vai-te embora, satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor teu Deus e somente a Ele prestarás culto’”. Então o diabo O deixou. E os Anjos se aproximaram e serviram a Jesus.

   Apesar de ter sido vencido duas vezes, o demônio deseja chegar ao último ponto: ser adorado por Nosso Senhor, o que suporia uma negação do culto a Deus. Para isto ele oferece o domínio temporal que levou muitos homens a seguir os ídolos, abandonando o verdadeiro Deus.

   A Nosso Senhor ele ofereceu o serviço dos Anjos e todos os tesouros da Terra, coisas que era incapaz de conceder, mas que foram entregues a Jesus-Homem junto com a realeza sobre toda a humanidade e sobre a ordem da criação, por ter vencido satanás e ter abraçado os tormentos do Calvário. Eis um princípio que deve nortear constantemente a nossa vida, até a hora da morte: nunca podemos dialogar com o demônio, criatura maldita que sempre tira aquilo que promete. Devemos encerrar qualquer conversa com ele logo no início, com o apoio da Palavra de Deus, à imitação de Nosso Senhor Jesus Cristo.

   As tentações nos obtêm, sobretudo, méritos para a eternidade. Tanto o santo quanto o pecador são tentados, e às vezes o primeiro mais que o segundo, a julgar pelo modo atroz com que satanás investiu contra Nosso Senhor. A grande diferença entre ambos é que um recusa as solicitações e o outro se rende. Logo, ser tentado não é um desastre, pelo contrário, pode ser até umbom sinal. De nossa parte é preciso não consentir e, para isso,  apoiemo-nos no auxílio divino, pois seria uma insensatez concebermos nossas qualidades como o fator essencial na luta contra o demônio, o mundo e a carne.

   Diante da tentação, devemos crer na força de Nosso Senhor Jesus Cristo e não nas nossas. 

   Se uma criança recém-batizada tem mais poder do que todos os infernos reunidos, os que possuem a vida divina nada devem temer! Quando o inimigo nos assalta, unamo-nos ainda mais a Nosso Senhor Jesus Cristo, animados pela lição deste início de Quaresma: para vencer todas as tentações é indispensável contar com a graça divina.

Obra consultada:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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7º Domingo do Tempo Comum

   No Evangelho de São Mateus o Sermão da Montanha ocupa três capítulos inteiros, e a Santa Igreja de tal forma valoriza esta pregação do Divino Mestre que lhe destinou seis domingos consecutivos do presente Ciclo Litúrgico, a fim de nos permitir considerá-la com maior profundidade e proveito espiritual.

   É no Evangelho deste 7º Domingo do Tempo Comum, entretanto, que se encontra o cerne de todo o Sermão da Montanha, o qual nos indica a via segura para atingirmos a santidade. No que consiste ser santo? Em alcançar a ousada meta traçada pelo Divino Mestre: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”.

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:  “Vós ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’  Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda!”

   Já tivemos ocasião de explicar como a lei de talião vigorava na Antiguidade. Podemos encontrá-la no Código de Hamurabi ― escrito por volta de 1750 a.C.,na Babilônia ―, tendo sido, inclusive, incorporada ao Direito Romano. Vale recordar vir o termo talião do latim talis, significando tal ou igual. Ou seja, o revide deveria ser proporcionado à ofensa.

   Também a legislação mosaica a empregava, como lemos no Livro do Êxodo: “urge dar vida por vida, olho por olho, dente  por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe” (21, 23-25). Se bem que, no início, a aplicação desta lei competisse apenas à legítima autoridade, mais tarde, com a decadência dos costumes, os particulares começaram a fazer justiça pelas próprias mãos e segundo seu critério, praticando atrozes represálias contra os adversários. É, pois, para premunir seus discípulos contra sentimentos de rancor que Nosso Senhor afirma: “se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda!”.

“Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto!”

   Naquele tempo era comum a posse de várias túnicas, mas só um ou dois mantos. Este último era reputado indispensável, o traje por excelência, mais valioso do que a própria túnica. Com efeito, vemos a preocupação de São Paulo em pedir a Timóteo, em uma de suas epístolas, a capa que havia deixado “em Trôade na casa de Carpo” (II Tim 4, 13). Segundo a Lei judaica, quem tomava o manto do próximo como penhor de empréstimo, não podia retê-lo até o dia seguinte e estava obrigado a devolvê-lo antes do pôr do Sol (cf. Ex 22, 26), porque faria muita falta ao proprietário. Assim, ao dizer que entreguemos “também o manto” a quem nos quiser tomar a túnica, Nosso Senhor nos recomenda o mais completo desapego dos bens terrenos e que nossas almas estejam livres de qualquer volúpia de posse.

“Se alguém te forçar a andar um quilômetro, caminha dois com ele!”

   Às vezes, os soldados romanos ou outros funcionários do governo requisitavam a ajuda de alguém para lhes servir de guia ou para outro trabalho, como aconteceu a Simão de Cirene, “que voltava do campo, e impuseram-lhe a Cruz para que a carregasse atrás de Jesus” (Lc 23, 26). Naturalmente, quando um imprevisto semelhante ocorria, muitos se queixavam e até se recusavam a atender ao pedido. Para nos ensinar o valor da caridade, diz Nosso Senhor: “Caminha dois quilômetros com ele!”. Ou seja, desde que esteja a seu alcance, faça de bom grado até mais do que lhe for solicitado.

“Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pede emprestado”.

   É preciso que nós cedamos sempre e demos tudo o que nos pedirem? Se este princípio fosse transformado em lei, a sociedade tornar-se-ia um caos em razão de incontáveis abusos. Não pode ser esta, portanto, a intenção de Nosso Senhor. Deseja Ele que nos esqueçamos de nós mesmos, preocupando-nos com as privações alheias, e que estejamos limpos de qualquer interesse e pragmatismo.

“Vós ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!’”

   Verdadeiro Legislador, Nosso Senhor Jesus Cristo vai retificar as interpretações falseadas da Lei de Moisés, que a alteravam e empobreciam, para dar nova plenitude aos Mandamentos e ensinamentos antigos.Ele mostra quão vazia é, em contraposição ao Evangelho, a moral das exterioridades criada pelos fariseus.

“Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem!”

   Se queremos ser filhos de Deus, precisamos ter uma completa isenção de ânimo em relação aos inimigos e rezar por eles.

   Por certo, não se deve ser indolente e permitir aos adversários da Igreja agirem livremente contra Ela, implantando ainiquidade na Terra. Se é obrigação amar os inimigos, é mister também odiar o pecado! Cumpre, pois, pedir a intervenção divina para fazer cessar o mal e empregar todos os meios ― sempre conforme a Lei de Deus e a dos homens ― para que este não prevaleça no mundo.

“Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos Céus, porque Ele faz nascer o Sol sobre os maus e os bons e faz cair a chuva sobre os justos e injustos”.

   O Pai que está nos Céus derrama as suas graças sobre todos, inclusive sobre os miseráveis e os malfeitores.

   Sendo esta a vontade do Pai, cabe-nos trabalhar com ardor, não apenas pela salvação de todos os que lutam neste valede lágrimas, mas ainda acelerar, com nossas preces e sacrifícios, a libertação das almas que padecem no Purgatório.

“Porque se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os cobradores de impostos não fazem amesma coisa? E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa?”

   A insuperável didática do Divino Mestre nos leva a compreender facilmente através destas duas confrontações que  amar os amigos e benfeitores nada tem de extraordinário. O mérito está em querer o bem até dos que nos atacam, roubam ouinjuriam.

   A esse respeito, esclarece Santo Agostinho: “Só a caridade  distingue os filhos de Deus dos do demônio. Persignem-se todoscom o sinal da Cruz de Cristo; respondam todos: Amém; cantem todos: Aleluia; batizem-se todos; frequentem a igreja, apinhem- -se nas basílicas; não se distinguirão os filhos de Deus dos do demônioa não ser pela caridade. […] Tens tudo o que quiseres; se te falta só a caridade, de nada te aproveita tudo o que tiveres”

   Jesus nos convida a segui-Lo pelas vias heroicas da caridade, da paciência e do perdão máximo, rápido e total. Por este motivo não podemos guardar ressentimento contra ninguém, mas devemosesquecer a priori qualquer ofensa pessoal.

“Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito!”

   Jesus formula, com uma  clareza insofismável, a meta e o objetivo de nossa vida: imitar o Pai celeste, modelo absoluto de santidade, adequando a Ele nossa mentalidade, inclinações e desejos. Mas como seremos perfeitos como Deus é perfeito?

   A vida sobrenatural em nós é passível de crescimento, na medida em que rezemos, nos esforcemos na prática da virtude evitando as ocasiões de pecado e frequentemos os Sacramentos. Mais que em outras épocas históricas, vivemos cercados de perigos que ameaçam nossa perseverança. Para resistir a todas essas solicitações do demônio, do mundo e da carne, é indispensável alimentar um grande desejo de alcançar o heroísmo da perfeição.

   No Céu nos está reservado um lugar que poderemos ocupar com mais ou menos brilho, dependendo da fidelidade com que busquemos ser “perfeitos como o nosso Pai celeste é perfeito”. A conhecida máxima de Paul Claudel, “a juventude não foi feita para o prazer, mas sim para o heroísmo”, na realidade está incompleta, pois o heroísmo em matéria de virtude não é uma obrigação exclusiva dos jovens, mas de todos os homens, sem exceção.

 

Obra consultada:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol II, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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