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No século do ateísmo, o anúncio do Reino de Maria

Mons. João Clá Dias, EP

imagem de Nossa Senhora em OlindaEm Fátima, Nossa Senhora não se dirigiu apenas à geração do início do século XX, mas sobretudo às que vieram depois. E à medida que as décadas vão passando, (…) as palavras proféticas da Mãe de Deus tomam mais realidade. Parecem ditas para os nossos dias, para nossa Pátria, para cada um de nós, para ti, leitor…

O que veio a Santíssima Virgem anunciar à humanidade pecadora? O que veio implorar? Quem teria coragem de recusar um pedido premente da Mãe de Deus?

Deus faz preceder suas grandes intervenções na história por numerosos e variados sinais. Com frequência, serve-se Ele de homens de virtude insigne para transmitir aos povos suas advertências, ou predizer acontecimentos futuros.

Assim procedeu o Padre Eterno em relação à vinda do Messias, seu Filho Unigênito. A magnitude de tal fato, em torno do qual gira a história dos homens, exigia uma longa e cuidadosa preparação. Assim, foi prenunciado durante muitos séculos pelos Profetas do Antigo Testamento, de tal forma que, por ocasião do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, tudo estava maduro para Sua vinda ao mundo. Até entre os pagãos, muitos esperavam algum acontecimento que desse uma saída para a crise moral na qual os homens de então estavam imersos.

Quase se poderia afirmar com segurança que, quanto mais importante o acontecimento previsto, tanto maior a grandeza dos sinais que o precedem, a autoridade dos profetas que o anunciam e o tempo de espera.

Dir-se-ia que, em sua infinita sabedoria, Deus, no trato com os homens, se pauta por determinadas regras para as quais muito dificilmente abre exceções.

Com efeito, “o Império Romano do Ocidente se encerrou com uma catástrofe iluminada e analisada pelo gênio de um grande Doutor, que fo Santo Agostinho. O ocaso da Idade Média foi previsto por um grande profeta, que foi São Vicente Férrer. A Revolução Francesa, que marca o fim dos Tempos Modernos, foi prevista por outro grande profeta, que foi ao mesmo tempo um grande Doutor: São Luís Maria Grignion de Montfort. Os Tempos Contemporâneos, que parecem na iminência de se encerrar com nova crise, têm um privilégio maior. Veio Nossa Senhora falar aos homens”.[1]

É fácil, à luz desta regra de História, avaliar a importância das profecias de Fátima, pois quem no-las anuncia não é um Anjo, nem um grande santo ou profeta, mas a própria Mãe de Deus.

Em Fátima, Nossa Senhora prediz inegavelmente o advento de grandes castigos para a humanidade (alguns dos quais já se cumpriram), caso esta não deixe de ofender a Deus. Porém, mais importante, num certo sentido, do que o anúncio das punições divinas, são os meios de salvação indicados pela Mãe de Deus: a oração do Rosário, a prática dos Cinco Primeiros Sábados, a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Sua finalidade mais imediata é dar aos homens a possibilidade de sair das vias tortuosas do pecado. Se outro motivo não houvesse, seria esta suficiente para uma intervenção tão extraordinária como são as Aparições em Fátima.

No entanto, há algo mais, de importância primordial, que motivou a Mãe de Deus a vir em pessoa transmitir sua mensagem aos três pastorinhos. É o anúncio da vitória da Santíssima Virgem sobre o império de Satanás, ou seja, o Reino de Maria, previsto por São Luís Maria Grignion de Montfort e por vários outros santos: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará!” – afirmou Nossa Senhora, em Fátima.

“É uma perspectiva grandiosa de universal vitória do Coração régio e materno da Santíssima Virgem. É uma promessa apaziguadora, atraente e sobretudo majestosa e empolgante”[2]. (…)

Para que nossos olhos possam contemplar maravilhados o meio-dia desse sol – o triunfo do Imaculado Coração de Maria – cuja aurora despontou em Fátima naquele dia 13 de maio de 1917, a Virgem Maria nos dá os meios: “Se fizerem o que Eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz.”

Uma dificuldade surge, no entanto. Os pedidos de Nossa Senhora não foram atendidos; os homens continuam a pecar cada vez mais. Que razões temos para crer que Nossa Senhora dará cumprimento à sua promessa?

Suas próprias palavras. Pois a Santíssima Virgem só põe condições para evitar os castigos, mas não para fazer triunfar seu Imaculado Coração. O texto da Mensagem não deixa dúvidas. Após o anúncio da uma sucessão de calamidades que adviriam para a humanidade caso esta não se convertesse, Nossa Senhora concluir, categoricamente, sem antepor condição alguma: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”.

Como se chegará a essa vitória final sobre o pecado, não o sabemos, pois não parece tê-lo revelado a Mãe de Deus. Apenas é certo que todos quantos atenderem a seus pedidos se salvarão, e muito possivelmente serão chamados a participar desse magnífico triunfo do Imaculado Coração de Maria.

(João S. Clá Dias, Fátima, Aurora do Terceiro Milênio, São Paulo, Abril 1998, pp. 7-9)

 


[1] Plínio Corrêa de Oliveira, Fátima: explicação e remédio da crise contemporânea, in Catolicismo, nº 29, maio de 1953.

[2] Plinio Corrêa de Oliveira, Fátima numa visão de conjunto, in Catolicismo, nº 197, maio de 1967.

Comemoração do dia 13 de maio em Recife

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Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano

Mons. João Clá Dias, EP

Nossa Senhora do Bom Conselho de GenazzanoEm meio a uma atmosfera de paz e bênção celestiais, ergue-se, em Genazzano, na Itália, uma igreja bela e nobre, de proporções harmônicas e distintas, dedicada, desde sua origem, a Nossa Senhora do Bom Conselho. (…)

capela onde se venera o afresco de Nossa Senhora do Bom ConselhoEm seu interior, na nave lateral esquerda, encontra-se uma pequena capela, especialmente construída para abrigar o afresco milagroso da Mãe do Bom Conselho.

A pintura, aplicada sobre delgada crosta de reboca, de 31 cm de largura por 42,5 cm de altura, retrata Maria Santíssima com inefável e materno afeto, amparando em seus braços o Menino Jesus, ambos encimados por um singelo arco-íris. As cores do afresco são suaves, e finos os traços dos admiráveis semblantes.

O magnum Mysterium!” – canta a Igreja no responsório das Matinas de Natal. Deus e Homem, hipostaticamente unidos! Seriedade e doçura, majestade e candura maravilhosamente expressas na fisionomia de uma criança.

Analise-se mais detidamente este quadro do Divino Infante. O nariz sem sinuosidades lembra a suprema retidão dAquele que é o Sol de Justiça. Seus olhos comunicativos, ligeiramente amendoados, de um castanho suave e luminoso, com certo matiz de verde, irradiam paz, ilimitada bondade, infinita sabedoria.

Atrai agradavelmente a vista sua túnica vermelho-ocre, em cuja gola se destacam bordados harmoniosos e enigmáticos. Mero ornato? Ou quiçá alguma palavra em idioma desconhecido, alusiva a sua missão?

Num gesta de intenso afeto, transbordante de amor, Ele envolve com a mão direita o nobre e delicado pescoço de sua Mãe, enquanto com a esquerda segura energicamente a parte superior do vestido dEla, como a dizer: “Sois toda minha!” É tão categórico esse comovedor e divino amplexo , que sua vista direita parece levemente desviada da linha normal, pela ênfase com que Ele estreita sua faca à de sua Mãe Santíssima.

Sem deixar de exprimir em nada a fisionomia própria de uma criança, o Divino Infante não denota, entretanto, a menor superficialidade, tão característica dessa fase da vida. Pelo contrário, como um oceano de seriedade, transparece nEle toda a profundidade e amplitude do entendimento, toda a força da vontade, toda a elevação e nobreza do sentir. E tem a mais alta consciência do que representa sua Mãe, do paraíso interior que Ela Lhe oferece. (…)

O Divino Infante quis manifestar aqui todo o seu comprazimento, toda a sua felicidade em estar no colo de sua Mãe Santíssima, como a indicar a necessidade de recorrer a Ela em todas as borrascas e sofrimentos desta vida, a fim de haurir a força e a coragem indispensáveis para seguir “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6)

Por sua atitude, o Menino Deus parece dizer a cada um: “Se queres algo de Mim, pede-o por meio de minha Mãe e serás atendido”. O quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzado bem poderia estar aureolado com as palavras “Mediação Universal de Maria”, pois o próprio Deus humanado quis encontrar proteção e amparo nos braços virginais de sua Mãe Santíssima.

O Menino pressiona levemente sua face contra o rosto de sua Mãe, e dEla recebe inefável manifestação de afeto, veneração e ternura, representada com especial acerto pelo grau de inclinação de ambas as cabeças, pelo modo como se olham.

Oh! Mistérios desta união, que fizeram exclamar a São Bernardo: “Maravilha-te com estas duas coisas e considera qual é causa de maior admiração: se a benigníssima mercê do Filho ou a excelentíssima dignidade de tal Mãe. De ambos os lados está o pasmo, de ambos o prodígio. Que Deus obedeça a uma Mulher, é humildade sem igual, e que uma Mulher tenha autoridade para mandar em Deus, é excelência sem igual” (São Bernardo, Obras Completas, BAC, Madrid, 1953, vol. I, p. 190)

Seria intenção do artista simbolizar a grandeza e profundidade da misteriosa união entre mãe e filho – união arquetípica neles, Maria e Jesus – pintando as faces tão juntas? Ao analisar os traços fisionômicos da Senhora do Bom Conselho – o rosado da face, a configuração retilínea no nariz, a inclinação do pescoço, a cor dos cabelos tendente ao dourado, o arqueado das sobrancelhas – percebe-se que Ela é a Mãe de um Filho que fisicamente muito se Lhe assemelha.

Então, por que pintar tão juntos Maria e Jesus Menino? É porque o Filho é o próprio Criador da excelsa Mãe. E a Mãe – a mais perfeita das criaturas – levou nas suas entranhas virginais o Divino Infante.

A Mãe, em altíssimo ato de adoração ao Filho, procurando como que adivinhar o que se passa em seu interior, considera ao mesmo tempo o fiel que a seus pés se ajoelha e, como Medianeira de todas as graças, acolhe sua prece e a apresenta a Deus Nosso Senhor.

Jamais teve alguém em seus braços tesouro de igual valor: infinito…! Entretanto, quem foi mais desejosa do que Nossa Senhora de atrair outros para compartilharem de seu tesouro?

É infinito o caleidoscópio de paradoxos que a consideração do relacionamento entre Nossa Senhora e seu Divino Filho, nesse afresco, sugere.

Há nesta união de Mãe e Filho uma intimidade e uma profundidade que surpreende e atrai. A união de alma, refletida no olhar que um e outro trocam entre si, gera em ambos uma tranquilidade e uma imobilidade no afeto que lhes parece fazer sentir a bem-aventurada delícia deste mútuo entendimento, deste mútuo estar juntos!

Mas, ao mesmo tempo, este profundo, calmo, sério e íntimo olhar não é excludente. O fiel sente-se atraído a entrar no aconchego e na serenidade desse olhar. Mãe e Filho se dispõem a receber com bondade o fiel devoto à procura de socorro, misericórdia ou amparo. O aconchego sacral que ambas as fisionomias irradiam faz com que o fiel se sinta entendido e amado nos aspectos mais nobres e elevados de sua alma.

Afresco Nossa Senhora do Bom ConselhoLeitor, abandona por um momento o texto e contempla uma vez mais – e agora detidamente – a foto do afresco, e deixa-te penetrar pela celestial atmosfera que Mãe e Filho criam. Por certo perceberás que, para além de suas qualidades pictóricas e artísticas, dessas duas fisionomias com que se evolam certas graças de presença de Nossa Senhora e do Menino Jesus, às quais bem poucos conseguem resistir. Sentirás que graças sensíveis batem à porta de tua alma, ou já a adentram, trazendo consigo uma paz repousante e um repouso pacificador. Ora é a fisionomia da Mãe, ora o olhar do Filho, ora o afresco no seu conjunto que te dará ânimo em meio às situações difíceis, que te consolará durante os sofrimentos, que te acalmará nas aflições, que te dará confiança nas angústias, coragem na hora de avançar, prudência ao ter que recuar; que, por fim, fará descer do Céu o milagre até ti, quando todos os recursos humanos se tiverem esgotado.

(João S. Clá Dias, Mater Boni Consilii, Edições Brasil de Amanhã, 1992, págs 3 a 8 )

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A anunciação do Anjo e a Encarnação do Verbo

Mons. João Scognamiglio Clá Dias

0055(1)E, estando Isabel no sexto mês, foi enviado por Deus o Anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão, que se chamava José, da casa de Davi, e o nome da Virgem era Maria. E, entrando o Anjo onde ela estava, disse-lhe: “Deus te salve, cheia de graça, o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres”.

E ela, tendo ouvido estas coisas, turbou-se com as suas palavras, e discorria pensativa que saudação seria esta. E o Anjo disse-lhe: “Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus; eis que conceberás no teu ventre, e darás à luz um filho, e por-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó; e o seu reino não terá fim”.

E Maria disse ao Anjo: “Como se fará isto, pois eu não conheço varão?” E, respondendo o Anjo, disse-lhe: “O Espírito Santo descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo  te cobrirá com a sua sombra. E, por isso mesmo, o Santo, que há de nascer de ti será chamado Filho de Deus. Eis que também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na sua velhice; e este é o sexto mês da que se diz estéril; porque a Deus nada é impossível”. Então disse Maria: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em segundo a tua palavra.” E o Anjo afastou-se dela. (Lc. 1, 26 – 38).

 

Primeiro Ponto

Nossa Senhora, jovem, – deveria ter aproximadamente seus quinze ou dezesseis anos – está em oração, está recolhida rezando, porque antes de  tudo Ela é criatura, e toda criatura  necessita de oração. Ela reza pedindo por si, pela humanidade, contemplando a situação do mundo naquele tempo e o seu futuro  –   Ela sabia perfeitamente quais eram os dramas, quais eram as conseqüências terríveis do pecado original. Ela queria que houvesse, o quanto antes, a Redenção. Ela conhecia – com o dom de Ciência, com o dom de Sabedoria,  porque Ela tinha estes dons em altíssimo grau – a origem do pecado já no paraíso terrestre, pela negação e pela desobediência de Adão e Eva. Em conseqüência, tinha Maria verdadeiro horror, indignação, inteira incompatibilidade com o pecado; Ela queria que houvesse quanto antes a vinda do Redentor, para que tudo se pusesse em ordem. E sabia perfeitamente que isso só se  obteria –  dom extraordinário – através da oração. Ela, por isso, rezava, e disso tinha necessidade. Nosso Senhor também rezou, e quantas vezes. Ele não precisava da oração, mas Ele rezava, e rezava pedindo por todos nós.

Explica-nos a teologia que tanto Nosso Senhor, quanto Nossa Senhora – Ele, por ser o Redentor, por ser o Salvador, e, portanto, o que há de mais alto em toda a ordem da criação, Ela por ser a mãe de todos os homens, a Rainha dos Anjos —  Ela e Ele tiveram um privilégio que foi de conhecer todos os homens até o fim dos tempos. Jesus, não só enquanto Deus, mas também enquanto homem, e Maria, enquanto mãe de todo o gênero humano, mãe de todos os santos, mãe de todos aqueles que são batizados, conheceram os homens  um por um. Nosso Senhor e Ela, portanto, tiveram em mente cada um e cada uma de nós que estamos aqui presentes hoje.

Nosso Senhor e Nossa Senhora tiveram um contato direto conosco antes que nós tivéssemos sido criados, e Eles nos viam. Nosso Senhor nos viu várias vezes. Nossa Senhora também.

Ela rezava, pedindo pela nossa salvação, quando lhe aparece o Anjo.

O Anjo aparece fazendo um elogio extraordinário, elogio que daria para deixar orgulhoso qualquer um. E, entrando o Anjo onde ela estava, disse-lhe: “Deus te salve, cheia de graça, o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres”. Ou seja, o Anjo elogia Nossa Senhora dizendo que Ela é a mais alta figura dentre todas as mulheres.

Nós sabemos perfeitamente como age em nós o orgulho, como age em nós a vaidade, como age em nós o amor-próprio, e, se aparecesse um Anjo para um ou uma de nós no quarto, enquanto este ou esta rezava, e o Anjo fosse São Gabriel cheio de luz — maravilha! — iluminaria o quarto inteiro, sentir-se-ia até o odor de um perfume extraordinário, e ele dissesse nada mais nada menos para nós homens, que somos o primeiro entre todos, ou então, para uma mulher: “Sois a mais alta criatura, a mais excelente de todas as mulheres…” Como nós tomaríamos um elogio destes?

Seria um elogio que nos colheria de surpresa e nos deixaria pasmos, mas ao mesmo tempo nosso amor-próprio, nosso orgulho, nossa vaidade, nosso desejo de aparecer, nosso desejo de ser o primeiro, a primeira, tomariam um grau de calor extraordinário dentro de cada um de nós. Nós ficaríamos rachando de orgulho.

No entanto, o que aconteceu com Nossa Senhora ao ouvir esse elogio? Qual foi a reação dela? São Lucas nos diz: “turbou-se com as suas palavras, e discorria pensativa que saudação seria esta. Olhemos para Ela. Não é verdade que Ela merece este elogio? Pois claro! Puríssima, virginalíssima, virtuosíssima, santíssima — Ela merecia este elogio. E se não houvesse outra razão, bastaria que o Anjo dissesse, e se este  disse é porque foi enviado por Deus para dizê-lo — “Anjo”, significa mensageiro de Deus — e o Anjo falou, é isto!

Ela, ao invés de pensar: “Então quer dizer que eu sou a primeira entre todas as mulheres!”, ao invés de Ela ficar contente, cheia de si, turbou-se, ficou perturbada. Perturbou-se porque tinha medo de ofender a Deus, atribuindo a si qualquer coisa que não lhe pertencesse. Medo de ofender a Deus. Medo de apropriar-se de algo que pertencia a Deus. Medo de consentir em ter um prazer, em ter uma complacência, em se julgar a primeira das mulheres.

Como seria bom se nós nos perturbássemos quando fôssemos elogiados. Maria nos dá esse exemplo. Na Anunciação Ela nos dá um exemplo extraordinário, porque se perturbou ao ouvir este elogio. E diz o texto de São Lucas: turbou-se com as suas palavras, e discorria pensativa que saudação seria esta. Como é que é isso? Um Anjo me aparece e diz isso?

Vejam que Ela não se assusta com a aparição do Anjo, Ela não fica com pânico de que lhe apareça um Anjo. Era tradição de todo o Antigo Testamento que quando um Anjo aparecia a alguém, esse alguém podia contar seus dias, pois estavam inteiramente postos numa seqüência que ia dar na morte próxima. A aparição de um Anjo era tida como prenúncio da morte. E todos aqueles que recebiam uma aparição de um Anjo se assustavam, e assim foi que aconteceu com Zacarias, esposo de Santa Isabel. Zacarias, quando viu o Anjo, ficou em pânico e pensou que fosse morrer. Nossa Senhora não se assusta com a aparição do Anjo. Ela era tão extraordinária que tinha  convívio com os Anjos; mas nada disso levava Nossa Senhora a se considerar como a primeira das mulheres.

Nós, que temos um convívio não com os Anjos, mas, tantas vezes, com o espelho; nós, que aparecemos diante do espelho e ficamos conversando com o espelho – e quantas e quantas vezes o espelho não mente dizendo que nós somos o primeiro dos homens ou a primeira das mulheres? Às vezes o espelho mente e nos diz que somos o primeiro ou a primeira; e nós, muitas vezes, acreditamos facilmente no que nos diz o espelho. E Nossa Senhora, com o elogio feito por um Anjo, se perturba e fica se pondo o problema: o que quer dizer isso? De onde é que saiu esta saudação? De onde vem isso? Eu, de minha natureza, não sou nada. Eu sou vazia. Eu sou a escrava do Senhor. Eu não tenho nada de mim mesma que valha alguma coisa. Eu nunca consegui nada por mim mesma, tudo vem de Deus. Agora vem este Anjo dizer que eu sou a primeira das mulheres. Que humildade!

O que foi obrigado o Anjo a dizer a Ela? O Anjo vai continuar o elogio. O Anjo lhe diz: “Não temas, Maria…” Não temas o quê? Não é ao Anjo, porque ele está ali e Ela, em nenhum momento, teve temor dele. Ela tinha medo das palavras, porque tinha medo de perder a humildade, tinha medo de apropriar-se de algo de Deus. O Anjo vai tranqüilizá-la: “Pois encontraste graça diante de Deus.” Ah bom! Se é por uma ação de Deus, por uma ação da graça, e não por mim mesma que obtive, e sim porque Deus teve misericórdia, Deus contemplou a minha miséria, Deus contemplou o meu nada, aí eu fico tranqüila, porque já não sou Eu, já não vem de mim. Não é algo que eu possa dizer “eu sou”.

Se há algo de bom em mim, esse algo de bom vem de Deus e não de mim, ou seja, o que tranqüilizaria Maria era saber que esse elogio feito pelo Anjo não vinha da natureza dela, esse elogio feito pelo Anjo vinha de uma predileção de Deus. Deus é que teve amor por ela, Deus é que deu a graça a Ela. Deus é que a fez a primeira das mulheres. Se for vontade de Deus, que seja feita. Eu, jamais quereria ambicionar ser a primeira das mulheres, a primeira das criaturas saída das mãos de Deus — nunca! Se Deus o quer, eu estou de acordo com a vontade de Deus. “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra”.

O Anjo vai dizer mais, uma vez que Ela se tranqüiliza sabendo que é pela ação da graça, ele lhe diz: “eis que conceberas no teu ventre, e darás à luz um filho, e por-lhes-á o nome de Jesus. Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó; e o seu reino não terá fim.”

Imaginem uma virgem que fez voto de virgindade, que não quer saber de maneira alguma de ofender a Deus, e recebe esta notícia de ser Mãe do Filho de Deus. Qualquer um de nós diante dessa situação diria: Ótimo, que coisa extraordinária, vamos direto, façamos logo isto. Maria perguntou ao Anjo. “Como se fará isto, pois eu não conheço varão?” É a preocupação:  Ela é virgem com a promessa de ser virgem até o fim da vida, porque não se pode falar em morte dela com toda a segurança. Ela queria permanecer na virgindade.       Nós encontramos, então, aqui outro ponto para  meditarmos, que é a virgindade, a castidade. Nesta cena nós vamos ter três representações da virgindade, três representações da castidade. A primeira delas é Deus. Deus é a Virgindade, Deus é a Castidade e, toda virgindade, toda castidade que há na face da Terra é um reflexo desta substância Virgindade, Castidade que é Deus. Nós temos o Anjo, que é puro por natureza, é a pureza enquanto reflexo da pureza de Deus. Então nós temos Deus enquanto sendo a Virgindade, o Anjo representante da Virgindade e a Virgem, também representante desta Virgindade de Deus, desta Castidade de Deus.

Ela virgem, o Anjo, virgem, Deus a Virgindade. Ela, tão Virgem que no começo da história da Igreja era chamada de Santa Maria Virgem. Aos poucos, isto que era sobrenome dela, Santa Maria Virgem, passou a ser o nome, porque hoje nós dizemos Virgem Maria. E Deus, que ama tanto a virgindade, quer tanto a virgindade, quer tanto a castidade, que Ele a fez permanecer virgem antes, durante e depois do parto. E aí está Ela neste primeiro mistério gozoso ressaltando muitíssimo esta virgindade. Ela diz: “como se fará isto…” E o que tranqüiliza Maria é quando o Anjo diz: “O Espírito Santo descerá sobre Ti, e a força do Altíssimo Te envolverá com a Sua Sombra, e por isso mesmo o santo que há de nascer de Ti será chamado Filho de Deus….” O Anjo dá uma prova: “… Eis que também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na sua velhice; e este é o sexto mês da que se diz estéril; porque a Deus nada é impossível.” Aí então Nossa Senhora diz: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.”

 

Segundo Ponto

Então nós vemos três características lindíssimas nessa Anunciação. A primeira é o recolhimento e a oração. Exemplo para nós de quanto é conveniente que nós estejamos em oração, porque é na oração que Deus se comunica conosco. A segunda é a virgindade de Maria, o quanto Ela aqui faz transparecer a beleza da virgindade. E a terceira é a completa despretensão, a humildade plena. Então, recolhimento, despretensão, e portanto  humildade, e a virgindade são para nós exemplos. Exemplo neste mundo que diz exatamente o contrário, neste mundo que hoje em dia é um mundo dissipado, feito de orgulho e de impureza; a castidade vai desaparecendo, a castidade vai se retirando deste mundo.

Discutem se é bom desarmar, se é bom não desarmar. Eu julgo que para se ter a verdadeira paz seria preciso que os homens e as mulheres todos praticassem a castidade. A prática da castidade é fecunda. Nós vemos aqui este exemplo. Ela, Virgem, passa a ser a Mãe de Deus, e por sua alta  humildade, alta virgindade, alto recolhimento, Ela não só é Mãe de Deus, mas recebe como filiação toda a humanidade. Ela é Mãe de toda a humanidade.

A castidade produz efeitos, produz frutos magníficos. Não há paz onde não há castidade. De maneira que, além de saber se os homens devem ter armas ou não devem ter armas, eu seria favorável a que também se pusesse o problema: os homens devem ou não devem ser castos? Eu digo os homens? É a humanidade, homens e mulheres. Neste século XXI, se os homens e as mulheres resolvessem, diante de Deus, abraçar a castidade com amor — ela custa nos seus primeiros passos, mas com a graça de Deus tudo é possível –  a humanidade seria outra. A paz desceria sobre a face da Terra. E hoje, que acontecem tsunamis, tufões, tremores de terra, guerras, assaltos e seqüestros,  insegurança, tudo vem desta falta de santidade; falta de santidade, falta de castidade, falta de humildade. O mundo está dando as costas para Deus. Esperemos que Deus não dê as costas para os homens, porque  aí será o fim do mundo.

 

Terceiro Ponto

Entretanto, sendo Nossa Senhora a nossa medianeira, disse em Fátima, “Por fim o Meu Imaculado Coração triunfará”.

O triunfo do Imaculado Coração dela será através do espírito de piedade, fazendo os homens voltarem-se para Deus com  humildade, reconhecendo tudo o que há de bom no Reino de Deus, na prática da castidade e de todas as outras virtudes. É só assim que se entende verdadeiramente o que significa o triunfo do Imaculado Coração de Maria no mundo.

Devemos pedir neste final de meditação à Virgem Maria que derrame sobre nós estas graças que Ela, durante séculos, tem represadas em suas mãos, que derrame sobre cada um de nós, no mais fundo de nossas almas, a ponto de fazer-nos compreender bem a beleza de todas esses virtudes, a beleza das virtudes que existem nela. E que assim possa Ela, olhando para nós, dizer: “Por fim o Meu Imaculado Coração triunfou.” Como triunfou? Porque Ela obteve para nós essas graças todas.

Todos receberão essas graças. Essas graças habitarão em todos, uns em maior grau, outros em menor, mas todos receberão. Quem corresponderá, quem não corresponderá? Isto a história nos dirá, pois o importante é não só receber essas graças, mas também a própria fidelidade, a própria correspondência a elas.

 

Oração Final

Ó Mãe, Vós que sois a Rainha do Anjos, a Mãe dos homens, a mais piedosa de todas as mulheres, a mais humilde de todas as criaturas, o mais virginal de todos os seres saídos das mãos de Deus; minha Mãe, nesta meditação que vos oferecemos, nesta meditação que fazemos para reparar o Vosso Sapiencial e Imaculado Coração de tantos crimes, tantas abominações que hoje em dia se cometem, nós vos pedimos: dai-nos a graça de sermos como Vós, dais-nos a graça de sermos humildes, dai-nos a graça de sermos piedosos e recolhidos, dai-nos a graça de sermos castos e puros. Dai-nos a graça de sermos um reflexo de vosso Sapiencial e Imaculado Coração no que Ele tem de mais excelso, de mais excelente, que são essas virtudes e muitas outras. Minha Mãe, nós queremos ser um daqueles que constituirão o triunfo de Vosso Sapiencial e Imaculado Coração.

Assim Seja.

(trechos da meditação de primeiro sábado na Catedral da Sé, em São Paulo, no dia 1/10/2005 – Homilia adaptada à linguagem escrita, publicada sem conhecimento e/ou revisão do autor.)

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O prêmio da escravidão a Maria Santíssima

Coronation of the Virgin -Fra Angelico- Galleria degli uffuzi - firenze, Italy

A escravidão de amor, aquela praticada pelos justos e pelos santos, outorga a plenitude da verdadeira liberdade.

Qual a vantagem de se consagrar à Virgem Mãe de Deus como seu escravo de amor? Um tal ato não tira a liberdade do homem? Não seria melhor a entrega de si ser feita diretamente a Jesus Cristo?

Pe. Juan Carlos Casté, EP

Obra máxima de São Luís Maria Grignion de Montfort, o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, em nossa opinião, pode ser considerado o cume da mariologia de todos os tempos. Pois, ensinando a escravidão de amor a Nosso Senhor por meio de Maria, São Luís nos aponta o caminho perfeito para alcançarmos nosso fim último, que é a união total com Jesus.

Uma devoção com as mais remotas origens

Essa forma de devoção não foi descoberta pelo missionário francês, falecido no começo do século XVIII. Trata-se, pelo contrário, de uma antiquíssima prática cujas origens se confundem com as da própria Igreja Católica.

São João de Ávila, futuro Doutor da Igreja, afirma ter ela sido praticada já por São José: “Quão rico, quão gozoso estava o santo varão por ver-se designado para servir a tal Filho e a tal Mãe. […] E quando considerava ser Ela a Mãe de Deus, ficava fora de si, de tanta admiração, e louvava a Deus por tê-lo tomado para esposo da Virgem, e a Ela se oferecia como escravo!”.1

Na esteira do Patrono da Santa Igreja, Santo Ildefonso de Toledo compôs, no século VII, esta belíssima oração, lembrada por João Paulo II por ocasião de sua visita à Espanha, em de 1982: “Sou vosso escravo, porque meu Senhor é vosso Filho. Sois minha Senhora, porque sois a escrava de meu Senhor. Sou escravo da escrava de meu Senhor, porque Vós fostes feita Mãe do meu Criador”.2

A Escola Francesa de Espiritualidade

Durante o “Século de Ouro” espanhol, a escravidão de amor à Santíssima Virgem vai tomar um renovado impulso.

Na espiritualidade da época, o termo “escravo” era corrente a ponto de o próprio Santo Inácio de Loyola considerar-se “como um indigno escravozinho” de Jesus.3 Contudo, coube a uma freira concepcionista franciscana, Sóror Inês de São Paulo, a honra de erigir a primeira Irmandade das Escravas da Mãe de Deus, fundada no dia 2 de agosto de 1595, em Alcalá de Henares.

Da Espanha, a devoção passou para o outro lado dos Pirineus, sendo difundida pela Escola Francesa de Espiritualidade, especialmente pelo Cardeal Pedro de Bérulle, São João Eudes e o venerável Tiago Olier.

Este último fundou em Paris no ano de 1642, a pedido do Cardeal de Bérulle, o Seminário de São Sulpício no qual o jovem Grignion de Montfort estudou e tomou conhecimento dessa devota prática, por ele levada às alturas que hoje admiramos. Com São Luís Maria, ela adquiriu uma profundidade cristológica, trinitária e missionária como nunca antes tivera, mas acrescida de uma singular característica: o Santo a descreveu em termos acessíveis ao povo fiel e pregou-a em suas missões populares. E essas peculiaridades não se perderam quando, no final de sua vida, a plasmou no famoso Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, o qual coaduna de modo incomparável a elevação do pensamento teológico com uma linguagem quase coloquial.

Somos escravos de Deus por natureza

A pedra angular da doutrina exposta por São Luís Grignion é uma verdade por vezes olvidada: “Antes do Batismo, nós pertencíamos ao demônio como seus escravos, e o Batismo nos transformou em verdadeiros escravos de Jesus Cristo”.4

“Ignorais que não vos pertenceis a vós mesmos?” (I Cor 6, 19), pergunta o Apóstolo. E São Luís acrescenta: “Pertencemos inteiramente a Ele como seus membros e seus escravos, comprados por um preço infinitamente alto, o preço de todo o seu Sangue”.5

Assentado este princípio, o missionário francês explica a diferença entre o servidor assalariado e o escravo, realçando nos mais vivos termos a inteira sujeição deste último em relação ao seu senhor: “Pela escravidão, um homem depende inteiramente de outro por toda a sua vida e deve servir seu senhor sem pretender nenhum pagamento ou recompensa, como um dos animais sobre os quais ele tem direito de vida e de morte”. 6

Essas palavras podem ferir os ouvidos do homem moderno, mas mostram com inegável clareza a necessidade de pertencermos totalmente a Cristo de forma perpétua, incondicional e gratuita.

Por natureza, afirma São Luís, todos os seres são escravos de Deus. Os demônios e os condenados o são também por constrangimento, os justos e os santos, por livre vontade. Este último gênero de escravidão é, obviamente, “o mais perfeito e o que dá maior glória a Deus, o qual olha o coração, pede o coração e é chamado o Deus do coração ou da vontade amorosa, porque por esta escravidão, a pessoa escolhe acima de tudo Deus e seu serviço, embora não obrigada a tal pela natureza”.7

Jesus e Maria, unidos como o fogo e o calor

Mas por que ser escravo de Jesus por meio de Maria? A devoção a Ela não acaba por desviar nossa atenção de Cristo?

É a pergunta tantas vezes repetida ao longo da História, à qual o Concílio Vaticano II, na Constituição Dogmática Lumen gentium, dá cabal resposta: “Todo o influxo salvador da Virgem Santíssima sobre os homens se deve ao beneplácito divino e não a qualquer necessidade; deriva da abundância dos méritos de Cristo, funda-se na sua mediação e dela depende inteiramente, haurindo aí toda a sua eficácia; de modo nenhum impede a união imediata dos fiéis com Cristo, antes a favorece”.8

O Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem é, no seu conjunto, uma resposta irrefutável a essa objeção que, entretanto, põe-se muito explicavelmente em grande número de pessoas, mesmo piedosas e desejosas de uma íntima união com Cristo. Até o jovem Karol Wojtyla chegou a sentir dificuldades a esse respeito, mas elas foram todas resolvidas pela argumentação teológica exposta no Tratado.9 Porque, como brilhantemente mostra São Luís nessa obra, longe de desviar ou apartar de Jesus Cristo, Maria Santíssima nos conduz à plena união com Ele.

“Seria possível que Aquela que achou graça diante de Deus para o mundo inteiro em geral, e para cada um em particular, impedisse uma alma de encontrar a grande graça da união com Ele? Seria possível que Aquela que foi cheia e superabundante de graças, e tão unida e transformada em Deus que este n’Ela Se encarnou, impedisse uma alma de ficar perfeitamente unida a Deus?” — pergunta-se o Santo.10

É claro que não, afirma São Luís, porque “Vós, Senhor, estais sempre com Maria, e Maria sempre convosco; nem pode Ela estar sem Vós, pois senão deixaria de ser o que é; de tal modo está Ela transformada em Vós, pela graça, que já não vive, já não existe: sois Vós que viveis e reinais n’Ela, de maneira mais perfeita que em todos os Anjos e Bem-aventurados. […] Maria está tão intimamente unida a Vós que mais fácil seria separar do sol a luz, e do fogo o calor”.11

A mais completa doação de si mesmo

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São João de Ávila, Doutor da Igreja, afirma ter sido praticada esta devoção já por São José.

O ato de perfeita consagração nas mãos de Maria, propugnado por esta devoção consiste em entregarmos a Ela “nosso corpo, com todos os seus membros e sentidos; nossa alma, com todas as suas potências; nossos bens exteriores que chamamos de fortuna, atuais e vindouros; nossos bens interiores e espirituais, que são nossos méritos, nossas virtudes, nossas boas obras presentes, passadas e futuras”.12

Mesmo após uma cuidadosa releitura das palavras de São Luís, difícil nos será aquilatar a radicalidade da entrega que fazemos de nós mesmos ao nos tornarmos escravos de Maria. Por esse ato, explica o missionário francês, a pessoa entrega a Jesus Cristo “tudo quanto Lhe pode dar, e muito mais do que por outras devoções, pelas quais ela Lhe dá uma parte de seu tempo ou de suas boas obras, ou uma parte de suas satisfações e mortificações. Aqui, tudo é dado e consagrado, até o direito de dispor dos seus bens interiores, e as satisfações obtidas por suas boas obras, dia a dia”.13

E isso, sublinha São Luís, não se faz nem mesmo numa ordem religiosa. “Nestas, consagram-se a Deus os bens de fortuna, pelo voto de pobreza; os bens do corpo, pelo voto de castidade; a vontade própria, pelo voto de obediência; e por vezes, a liberdade do corpo, pelo voto de clausura. Mas não se Lhe dá a liberdade ou o direito de dispor de suas boas obras, nem se despoja tanto quanto possível daquilo que o cristão tem de mais precioso e caro: seus méritos e satisfações”.14

Acrescentando um novo aspecto à visão mariológica do Tratado, que ajuda a compreender ainda melhor quão íntegra deve ser a nossa doação a Maria, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira comenta: “A devoção de São Luís Grignion de Montfort consiste na doação completa de nós mesmos a Nossa Senhora, na qualidade de escravos. Escravos, porque demos a Ela mais do que um filho pode dar. As relações de um filho com sua mãe são muito mais íntimas, muito mais próximas, muito mais profundas, do que as relações de um escravo com seu senhor. Mas, em face de sua mãe e de seu pai, o filho conserva direitos. Em face de seu senhor, o escravo como que não retém direitos. A renúncia de si, feita por aquele que tem a promessa de escravidão a Nossa Senhora é, em certo sentido, mais profunda do que a renúncia que faz aquele que se considera simplesmente filho d’Ela”.15

Por Maria, com Maria, em Maria e para Maria

No final da sua obra, São Luís aconselha algumas “práticas interiores muito santificantes para aqueles que o Espírito Santo chama à mais alta perfeição”.16 Consistem elas em fazer todas as ações “por Maria, com Maria, em Maria e para Maria, a fim de fazê-las mais perfeitamente por Cristo, com Cristo, em Cristo e para Cristo”.17

a) Por Maria – Segundo o padre Alfonso Bossard, “trata-se de conformar-se e deixar-se conformar por Ela, no espírito que A anima, o qual não é outro senão o Espírito Santo, fonte e princípio de toda a vida em Cristo”.18

b) Com Maria – É o esforço que devemos fazer para imitar Maria, “na medida de nossas capacidades”. Ela é “o único e grande molde de Deus”, no qual é preciso lançar-se para se converter em “imagem perfeita” de Jesus Cristo.19

c) Em Maria – “É mais propriamente um resultado ao qual se pode chegar, fruto que o devoto pode obter ‘por sua fidelidade’, como uma imensa graça, por ter posto em prática o ‘por’ e o ‘com’ Maria. Viver em Maria não é experimentar […] a presença amorosa de Maria?”.20

d) Para Maria – É consequência lógica da consagração: fazer tudo para sua Senhora, desde pequenos serviços até os maiores empreendimentos. Não, porém — insiste, São Luís — como fim último de nossas ações, o qual só pode ser Jesus Cristo, mas como fim próximo, intermediário e meio mais eficaz de chegar a Ele.

Precisamos de um mediador junto ao próprio Mediador

karol wojtyla as a young man and as bishop - original picture - Archdiocesan Museum - Krakow, Poland

A devoção a Maria, não acaba por desviar nossa atenção de Cristo? A essa pergunta, o Concílio Vaticano II dá cabal resposta.

Os tópicos 135 a 182 do Tratado estão dedicados a expor os motivos que tornam recomendável esta devoção, entre os quais o de ser essa piedosa prática um caminho “fácil, curto, perfeito e seguro para chegar à união com Jesus Cristo, na qual consiste a perfeição do cristão”.21

Ora o que, em nossa opinião, constitui a principal razão para nos consagramos a Jesus pelas mãos de Maria é desenvolvido numa parte anterior da obra, na qual se enumeram e desenvolvem as verdades fundamentais da devoção a Maria. A quarta delas é: precisamos de um mediador junto ao próprio Mediador.

Grignion de Montfort faz notar que “por via de regra, nossas melhores ações são manchadas e corrompidas pelo fundo de maldade existente em nós”.22 Assim, não podemos estar seguros de ter as disposições adequadas para nossos pedidos serem atendidos. Tomando isso em consideração, pergunta ele: “Não precisaremos de um mediador junto ao próprio Mediador?”.23 E sua resposta é: necessitamos da intercessão de Nossa Senhora para suprir nossas imperfeições e podermos, através d’Ela, nos apresentar diante do Medianeiro por excelência, Jesus Cristo, que é Deus, em tudo igual ao Pai e ao Espírito Santo.

Pelo que conclui o santo missionário: “Digamos, pois, ousadamente com São Bernardo que temos necessidade de um mediador junto do próprio Mediador, e que a divina Maria é a mais capaz de cumprir essa missão caritativa”.24

Como não lembrarmos, ao ouvirmos esses ensinamentos de São Luís, da Redemptoris Mater? Nessa encíclica, o Beato João Paulo II, em perfeita harmonia com a doutrina mariológica do Concílio, realça a “função maternal” dessa mediação.25 E cita, para isso, a solene Profissão de Fé feita pelo Papa Paulo VI em 30 de junho de 1968, bem como o discurso de 21 de novembro de 1964, no qual o mesmo Papa proclamou Maria “Mãe da Igreja”.

O grande paradoxo: a escravidão que liberta

Como conclusão das presentes considerações, cabe lembrar o paradoxo evangélico segundo o qual o homem deve perder a sua vida por Cristo para salvá-la (cf. Lc 9, 24). Ou, por outras palavras, a necessidade de aniquilarmos a nós mesmos, assumindo a condição de escravos, para termos “o mesmo sentir e pensar que o Cristo Jesus” (Fl 2, 5).

A escravidão de amor, aquela praticada pelos justos e pelos santos, outorga a plenitude da verdadeira liberdade. E é este um dos pontos mais entusiasmantes da doutrina montfortiana: nossa total entrega a Jesus, tornada efetiva pelas mãos de Maria, constitui o meio mais poderoso para nos liberar do jugo dos vícios, dos nossos pecados atuais e dos efeitos do pecado original.

Da glória que traz esse paradoxo para quem o pratica, é Nossa Senhora paradigma perfeito. Pois Aquela que quis ser apenas a escrava do Senhor, “terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial”.26

A mais íntima união com Maria que uma criatura possa jamais obter

Ora, ao conceber a sagrada escravidão a Jesus pelas mãos de Maria, explica o professor Plinio Corrêa de Oliveira, “São Luís Grignion não teve a intenção de excluir o apelativo de filho; ele acumula ambos. É por nos sentirmos filhos de Nossa Senhora, e por reconhecermos n’Ela, além de uma Mãe perfeita e incomparável, a Mãe de Deus, que a este título somamos à condição de filhos também a de escravos”.27

E o líder católico brasileiro — cuja vida foi, do início ao fim, o mais belo ato de louvor a Maria que o autor destas linhas teve oportunidade de conhecer — conclui dizendo: “Não se trata apenas, no ato de escravidão a Nossa Senhora, de se conseguir uma união muito íntima com Ela. Trata-se de obter a união mais íntima que uma criatura, nas nossas condições, possa jamais obter. É a nota característica da devoção de São Luís Grignion. Não se pode dizer apenas que é um método de união muito estreito a Maria Santíssima. É muito mais. Por muito que esforcemos nosso espírito, não descobriremos um método de união que vincule mais uma criatura a Nossa Senhora”.28

Recompensa demasiadamente grande

San Bernardo por Philippe Quantin Museo Dijon Francia_008

“Digamos, pois, ousadamente com São Bernardo que temos necessidade de um mediador junto ao próprio Mediador”

Quais são as vantagens dessa união?

A resposta vem por si. Basta considerar quem é Maria. Ela é nossa Mãe e, ao mesmo tempo, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Como nossa Mãe, Ela usa para conosco, se fosse respeitoso dizê-lo, de todos os preconceitos, parcialidades e parti-pris que uma boa mãe tem em relação a seu filho”29, chegando nesse amor materno quase que à fraudulência, como fez Rebeca em relação a Jacó.

Sendo também Mãe Perfeita do Filho Perfeito, a recompensa que Ela dê ao nosso amor só pode ser também perfeita, proporcionada, não ao valor do que Lhe demos, mas à generosidade d’Aquela que o recebeu. “Ego protector tuus sum, et merces tua magna erit nimis” — “Eu sou o teu protetor e tua recompensa demasiadamente grande” (Gn 15, 1), afirmou Deus a Abraão. O próprio Cristo, que quis tomar a forma de escravo no seio virginal de Maria para nos liberar do cruel cativeiro do demônio, há de ser o prêmio inefável da sagrada escravidão de amor.

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1 SÃO JOÃO DE ÁVILA, apud GUTIERREZ, OFM, Enrique. Sor Inés de San Pablo, Fundadora de la primera Esclavitud Mariana. Burgos: Aldecoa, 1984, p.21-22.

2 SANTO ILDEFONSO DE TOLEDO, apud BEATO JOÃO PAULO II. Homilia, 6/11/1982, n.4.

3 SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Exercícios Espirituais, n.114.

4 SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Traité de la Vraie Dévotion a la Sainte Vierge, n.68. In: Œuvres complètes. Paris: Seuil, 1966.

5 Idem, ibidem.

6 Idem, n.69.

7 Idem, n.70.

8 CONCÍLIO VATICANO II. Lumen gentium, n.60.

9 Cf. BEATO JOÃO PAULO II. Dom e Mistério. São Paulo: Paulinas, 1996, p.37.

10 SÃO LUIS MARIA GRIGNION DE MONTFORT, op. cit., n.164.

11 Idem, n.63.

12 Idem, n.121.

13Idem, n.123.

14 Idem, ibidem.

15 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Comentários ao Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. In: Circular aos Sócios e Militantes da TFP. Outubro 1966, p.86.

16 SÃO LUIS MARIA GRIGNION DE MONTFORT, op. cit., n.257.

17 Idem, ibidem.

18 BOSSARD, SSM, Alphonse. La doctrina de San Luis María Grignion de Montfort. Algunos aspectos sobresalientes, p.16. (Documento oferecido ao autor pelos padres montfortianos de Bogotá).

19 SÃO LUIS MARIA GRIGNION DE MONTFORT, op. cit., n.260.

20 BOSSARD, op. cit., p.17.

21 SÃO LUIS MARIA GRIGNION DE MONTFORT, op. cit., n.152. Os tópicos 152 a 168 do Tratado, destinam-se a demonstrar essa afirmação.

22 Idem, n.78.

23 Idem, n.85.

24 Idem, ibidem.

25 BEATO JOÃO PAULO II. Redemptoris Mater, n.47.

26 PIO XII. Munificentissimus Deus, n.44.

27 CORRÊA DE OLIVEIRA, op. cit., p.86.

28 Idem, p.87.

29 Idem, ibidem.

A perfeita consagração a Jesus Cristo

Em que consiste a perfeita consagração a Jesus Cristo, pelas mãos de Maria propugnada por São Luís Maria Grignion de Montfort? A resposta no-la dá o próprio santo.

Inmaculado Corazón de María - Serie 33 -Fondo SRM - Serie de fotos del día 29 06 2005

“A perfeita consagração a Jesus Cristo nada mais é que uma perfeita e inteira consagração à Santíssima Virgem, e nisto consiste a devoção que ensino”

A mais perfeita devoção é aquela pela qual nos conformamos, unimos e consagramos mais perfeitamente a Jesus Cristo, pois toda a nossa perfeição consiste em sermos conformados, unidos e consagrados a Ele. Ora, pois que Maria é, de todas as criaturas, a mais conforme a Jesus Cristo, segue daí que, de todas as devoções, a que mais consagra e conforma uma alma a Nosso Senhor é a devoção à Santíssima Virgem, sua santa Mãe, e que, quanto mais uma alma se consagrar a Maria, mais consagrada estará a Jesus Cristo.

Eis por que a perfeita consagração a Jesus Cristo nada mais é que uma perfeita e inteira consagração à Santíssima Virgem, e nisto consiste a devoção que eu ensino; ou, por outra, uma perfeita renovação dos votos e promessas do santo Batismo.

Esta devoção consiste, portanto, em entregar-se inteiramente à Santíssima Virgem, a fim de, por Ela, pertencer inteiramente a Jesus Cristo.

É preciso dar-lhe: 1º nosso corpo com todos os seus membros e sentidos; 2º nossa alma com todas as suas potências; 3º nossos bens exteriores, que chamamos de fortuna, presentes e futuros; 4º nossos bens interiores e espirituais, que são nossos méritos, nossas virtudes e nossas boas obras passadas, presentes e futuras. Numa palavra, tudo que temos na ordem da natureza e na ordem da graça, e tudo que, no porvir, poderemos ter na ordem da natureza, da graça e da glória, e isto sem nenhuma reserva, sem a reserva sequer de um real, de um cabelo, da menor boa ação, para toda a eternidade, sem pretender e nem esperar a mínima recompensa de sua oferenda e de seu serviço, a não ser a honra de pertencer a Jesus Cristo por Ela e n’Ela, mesmo que esta amável Senhora não fosse, como é sempre, a mais liberal e reconhecida das criaturas.

Importa notar, aqui, duas coisas que há nas boas obras que fazemos, a saber: a satisfação e o mérito, ou o valor satisfatório ou impetratório e o valor meritório.

O valor satisfatório ou impetratório duma boa obra é uma boa ação na medida em que satisfaz a pena devida pelo pecado, ou em que obtém alguma nova graça; o valor meritório ou o mérito é uma boa ação, em quanto merece a graça e a glória eterna.

Ora, nesta consagração de nós mesmos à Santíssima Virgem, nós lhe damos todo o valor satisfatório, impetratório e meritório, ou por outra, as satisfações e os méritos de todas as nossas boas obras: damos-lhe nossos méritos, nossas graças e nossas virtudes, não para comunicá-los a outrem (porque nossos méritos, graças e virtudes, propriamente falando, são incomunicáveis; só Jesus Cristo, fazendo-se nosso penhor diante de seu Pai, pôde comunicar-nos seus méritos), mas para no-los conservar, aumentar e encarecer, como diremos ainda. (Cf. n.146, ss). Damos-lhe nossas satisfações para que ela as comunique a quem bem lhe pareça e para maior glória de Deus.

Daí segue 1º que, por esta devoção, damos a Jesus Cristo, do modo mais perfeito, pois que o fazemos pelas mãos de Maria, tudo que lhe podemos dar, e muito mais que por outras devoções, pelas quais lhe damos uma parte de nosso tempo ou de nossas boas obras, ou uma parte de nossas satisfações e mortificações. Aqui damos e consagramos tudo, até o direito de dispor dos bens interiores, e as satisfações que ganhamos por nossas boas obras, dia a dia: e isto não se faz nem mesmo numa ordem religiosa.

Nestas, consagram-se a Deus os bens de fortuna pelo voto de pobreza, os bens do corpo pelo voto de castidade, a vontade própria pelo voto de obediência, e, às vezes, a liberdade do corpo pelo voto de clausura. Não se lhe dá, porém, a liberdade ou o direito que temos de dispor de nossas boas obras, nem se renuncia tanto como se pode ao que o cristão tem de mais precioso e caro: seus méritos e satisfações.

2º Uma pessoa, que assim voluntariamente se consagrou e sacrificou a Jesus Cristo por Maria, já não pode dispor do valor de nenhuma de suas boas ações. Tudo que sofre, tudo que pensa, diz e faz de bem pertence a Maria, para que Ela de tudo disponha conforme a vontade e para maior glória de seu Filho, sem que, entretanto, esta dependência prejudique de modo algum as obrigações de estado no qual esteja presentemente, ou venha a estar no futuro: por exemplo, as obrigações de um sacerdote que, por dever de ofício ou por outro motivo, deve aplicar o valor satisfatório e impetratório da Santa Missa a um particular; pois não se faz esta oferta a não ser conforme a ordem de Deus e os deveres de estado.

3º A consagração é feita conjuntamente à Santíssima Virgem e a Jesus Cristo; à Santíssima Virgem como ao meio perfeito que Jesus Cristo escolheu para se unir a nós e nós a Ele; e a Nosso Senhor como o nosso fim último, ao qual devemos tudo o que somos, como a nosso Redentor e nosso Deus.

(SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT.
Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Petrópolis: Vozes, 1994. 20ª ed., p.119-123)

Fonte: Revista Arautos do Evangelho nº 119 (Nov/11)

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