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7º Domingo do Tempo Comum

   No Evangelho de São Mateus o Sermão da Montanha ocupa três capítulos inteiros, e a Santa Igreja de tal forma valoriza esta pregação do Divino Mestre que lhe destinou seis domingos consecutivos do presente Ciclo Litúrgico, a fim de nos permitir considerá-la com maior profundidade e proveito espiritual.

   É no Evangelho deste 7º Domingo do Tempo Comum, entretanto, que se encontra o cerne de todo o Sermão da Montanha, o qual nos indica a via segura para atingirmos a santidade. No que consiste ser santo? Em alcançar a ousada meta traçada pelo Divino Mestre: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”.

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:  “Vós ouvistes o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente!’  Eu, porém, vos digo: Não enfrenteis quem é malvado! Pelo contrário, se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda!”

   Já tivemos ocasião de explicar como a lei de talião vigorava na Antiguidade. Podemos encontrá-la no Código de Hamurabi ― escrito por volta de 1750 a.C.,na Babilônia ―, tendo sido, inclusive, incorporada ao Direito Romano. Vale recordar vir o termo talião do latim talis, significando tal ou igual. Ou seja, o revide deveria ser proporcionado à ofensa.

   Também a legislação mosaica a empregava, como lemos no Livro do Êxodo: “urge dar vida por vida, olho por olho, dente  por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe” (21, 23-25). Se bem que, no início, a aplicação desta lei competisse apenas à legítima autoridade, mais tarde, com a decadência dos costumes, os particulares começaram a fazer justiça pelas próprias mãos e segundo seu critério, praticando atrozes represálias contra os adversários. É, pois, para premunir seus discípulos contra sentimentos de rancor que Nosso Senhor afirma: “se alguém te dá um tapa na face direita, oferece-lhe também a esquerda!”.

“Se alguém quiser abrir um processo para tomar a tua túnica, dá-lhe também o manto!”

   Naquele tempo era comum a posse de várias túnicas, mas só um ou dois mantos. Este último era reputado indispensável, o traje por excelência, mais valioso do que a própria túnica. Com efeito, vemos a preocupação de São Paulo em pedir a Timóteo, em uma de suas epístolas, a capa que havia deixado “em Trôade na casa de Carpo” (II Tim 4, 13). Segundo a Lei judaica, quem tomava o manto do próximo como penhor de empréstimo, não podia retê-lo até o dia seguinte e estava obrigado a devolvê-lo antes do pôr do Sol (cf. Ex 22, 26), porque faria muita falta ao proprietário. Assim, ao dizer que entreguemos “também o manto” a quem nos quiser tomar a túnica, Nosso Senhor nos recomenda o mais completo desapego dos bens terrenos e que nossas almas estejam livres de qualquer volúpia de posse.

“Se alguém te forçar a andar um quilômetro, caminha dois com ele!”

   Às vezes, os soldados romanos ou outros funcionários do governo requisitavam a ajuda de alguém para lhes servir de guia ou para outro trabalho, como aconteceu a Simão de Cirene, “que voltava do campo, e impuseram-lhe a Cruz para que a carregasse atrás de Jesus” (Lc 23, 26). Naturalmente, quando um imprevisto semelhante ocorria, muitos se queixavam e até se recusavam a atender ao pedido. Para nos ensinar o valor da caridade, diz Nosso Senhor: “Caminha dois quilômetros com ele!”. Ou seja, desde que esteja a seu alcance, faça de bom grado até mais do que lhe for solicitado.

“Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pede emprestado”.

   É preciso que nós cedamos sempre e demos tudo o que nos pedirem? Se este princípio fosse transformado em lei, a sociedade tornar-se-ia um caos em razão de incontáveis abusos. Não pode ser esta, portanto, a intenção de Nosso Senhor. Deseja Ele que nos esqueçamos de nós mesmos, preocupando-nos com as privações alheias, e que estejamos limpos de qualquer interesse e pragmatismo.

“Vós ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!’”

   Verdadeiro Legislador, Nosso Senhor Jesus Cristo vai retificar as interpretações falseadas da Lei de Moisés, que a alteravam e empobreciam, para dar nova plenitude aos Mandamentos e ensinamentos antigos.Ele mostra quão vazia é, em contraposição ao Evangelho, a moral das exterioridades criada pelos fariseus.

“Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem!”

   Se queremos ser filhos de Deus, precisamos ter uma completa isenção de ânimo em relação aos inimigos e rezar por eles.

   Por certo, não se deve ser indolente e permitir aos adversários da Igreja agirem livremente contra Ela, implantando ainiquidade na Terra. Se é obrigação amar os inimigos, é mister também odiar o pecado! Cumpre, pois, pedir a intervenção divina para fazer cessar o mal e empregar todos os meios ― sempre conforme a Lei de Deus e a dos homens ― para que este não prevaleça no mundo.

“Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos Céus, porque Ele faz nascer o Sol sobre os maus e os bons e faz cair a chuva sobre os justos e injustos”.

   O Pai que está nos Céus derrama as suas graças sobre todos, inclusive sobre os miseráveis e os malfeitores.

   Sendo esta a vontade do Pai, cabe-nos trabalhar com ardor, não apenas pela salvação de todos os que lutam neste valede lágrimas, mas ainda acelerar, com nossas preces e sacrifícios, a libertação das almas que padecem no Purgatório.

“Porque se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os cobradores de impostos não fazem amesma coisa? E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa?”

   A insuperável didática do Divino Mestre nos leva a compreender facilmente através destas duas confrontações que  amar os amigos e benfeitores nada tem de extraordinário. O mérito está em querer o bem até dos que nos atacam, roubam ouinjuriam.

   A esse respeito, esclarece Santo Agostinho: “Só a caridade  distingue os filhos de Deus dos do demônio. Persignem-se todoscom o sinal da Cruz de Cristo; respondam todos: Amém; cantem todos: Aleluia; batizem-se todos; frequentem a igreja, apinhem- -se nas basílicas; não se distinguirão os filhos de Deus dos do demônioa não ser pela caridade. […] Tens tudo o que quiseres; se te falta só a caridade, de nada te aproveita tudo o que tiveres”

   Jesus nos convida a segui-Lo pelas vias heroicas da caridade, da paciência e do perdão máximo, rápido e total. Por este motivo não podemos guardar ressentimento contra ninguém, mas devemosesquecer a priori qualquer ofensa pessoal.

“Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito!”

   Jesus formula, com uma  clareza insofismável, a meta e o objetivo de nossa vida: imitar o Pai celeste, modelo absoluto de santidade, adequando a Ele nossa mentalidade, inclinações e desejos. Mas como seremos perfeitos como Deus é perfeito?

   A vida sobrenatural em nós é passível de crescimento, na medida em que rezemos, nos esforcemos na prática da virtude evitando as ocasiões de pecado e frequentemos os Sacramentos. Mais que em outras épocas históricas, vivemos cercados de perigos que ameaçam nossa perseverança. Para resistir a todas essas solicitações do demônio, do mundo e da carne, é indispensável alimentar um grande desejo de alcançar o heroísmo da perfeição.

   No Céu nos está reservado um lugar que poderemos ocupar com mais ou menos brilho, dependendo da fidelidade com que busquemos ser “perfeitos como o nosso Pai celeste é perfeito”. A conhecida máxima de Paul Claudel, “a juventude não foi feita para o prazer, mas sim para o heroísmo”, na realidade está incompleta, pois o heroísmo em matéria de virtude não é uma obrigação exclusiva dos jovens, mas de todos os homens, sem exceção.

 

Obra consultada:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol II, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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Solenidade de Todos os Santos

Santo Agostinho diversas vezes em seus escritos recorda-se do Monte Olimpo. Montanha tão alta que lá não se sente nem ventos, nem nuvens, nem chuvas. Nem mesmo as aves podem lá pousar, porque fica tão alto, que o ar ali é muito puro e subtil, e por isso não se podem lá produzir e sustentar as nuvens que precisam de ar mais denso.

Por esta mesma razão, nem as aves nem os homens podem lá viver, porque, sendo o ar tão rarefeito e leve, não é suficiente para poder respirar. Alguns que conseguiram subir tiveram de levar consigo esponjas molhadas para que, pondo-as no nariz, pudessem adensar o ar, e respirar melhor. Estes alpinistas lá no cimo do monte escreviam certas letras no pó, e no ano seguinte encontravam-nas tão inteiras e bem formadas como as tinham deixado, pois lá não chegavam nem os ventos nem as chuvas.

Pois bem, este é o estado de perfeição a que subiram e chegaram os que possuem uma inteira conformidade com a vontade de Deus. Subiram tão alto e alcançaram tamanha paz, que não há nuvem, nem ventos, nem chuvas que lá cheguem, nem aves de rapina que salteiam nem roubam a paz e alegria de seu coração, são estes os Bem-aventurados de quem Nosso Senhor fala no Evangelho desta Solenidade de Todos os Santos.

Na Solenidade de Todos os Santos a Igreja celebra todos aqueles que já se encontram na plena posse da visão beatífica, inclusive os não canonizados. Sim, alegremo-nos, porque santos são também — no sentido lato do termo — todos os que fazem parte do Corpo Místico de Cristo: não só os que conquistaram a glória celeste, como também os que satisfazem a pena temporal no Purgatório, e os que, ainda na Terra de exílio, vivem na graça de Deus.

 O contraste entre a Antiga e a Nova Lei

Em primeiro lugar, apreciemos o contraste desta cena do Sermão da Montanha com outro importante discurso da História Sagrada: a promulgação da Antiga Lei, no Monte Sinai (cf. Ex 19—23).

No Sinai, foi dado a Moisés um código de leis, com severos castigos para quem o transgredisse; na montanha, Nosso Senhor mostra, com misericórdia sem limites, quais os prêmios e as maravilhas concedidas por Deus a quem pratica a virtude e cumpre a Lei. No Sinai, Moisés representa a Lei, servindo de exemplo por seu zelo em cumprir essa mesma Lei; na montanha, Jesus Cristo é o modelo perfeito da lei da bondade.

Nessa perspectiva de bondade, Jesus proclama as Bem-aventuranças, mostrando a que alturas é capaz de se elevar uma alma pelo florescimento dos dons do Espírito Santo, produzindo atos de virtude heroica. Ser santo, então, significa ser um bem-aventurado no tempo para depois sê-lo na eternidade.

A filiação divina nos confere uma qualidade

Em que consiste, pois, essa bem-aventurança? Na segunda leitura (I Jo 3, 1-3) São João nos dá a resposta: “Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de Deus. E nós realmente o somos” (I Jo 3, 1a). Na verdade, por ocasião do Batismo, embora a natureza humana continue a mesma, com inteligência, vontade e sensibilidade, acrescenta-se em nós uma qualidade: a participação na própria natureza divina, que nos assume por completo. A graça, explica São Boaventura, “é um dom que purifica, ilumina e aperfeiçoa a alma; que a vivifica, a reforma e a consolida; que a eleva, a assimila e a une a Deus, tornando-a aceitável; pelo que semelhante dom justamente chama-se graça, pois nos faz gratos, isto é, graça gratificante”.

Sendo um bem do espírito, não pode ser vista com os olhos materiais, pois estes captam só o que é sensível, mas comprovamos, isto sim, seus efeitos. Santa Catarina de Sena, a quem Nosso Senhor concedera a graça de contemplar o estado das almas, chegou a afirmar a seu confessor: “Meu pai, se vísseis o fascínio de uma alma racional, não duvido que daríeis cem vezes a vida pela sua salvação, porque neste mundo nada há que se lhe possa igualar em beleza”.

Imaginemos um vitral esplendoroso, com uma perfeita combinação de cores, fabricado com vidro da melhor qualidade, contendo até ouro na sua composição. Uma vez posto na janela, se não é iluminado, que valor terá peça tão espetacular? Entretanto, a partir do momento em que os raios de luz sobre ele incidem, brilhará com extraordinários matizes, desdobrando-se em mil reflexos multicoloridos.

Da mesma forma como a luz ilumina o vitral, também a graça confere nova qualidade à alma humana, que é, por assim dizer, submersa na natureza divina.

Uma semente da glória futura

 

Filhos de Deus… “nós o somos! Se o mundo não nos conhece é porque não conheceu o Pai. Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos” (I Jo 3, 1b-2a). De fato, enquanto permanecemos neste mundo, em estado de prova, temos a graça santificante, recebida no Batismo, e as graças atuais, que Deus derrama sobre nós ao longo da nossa existência. Todavia, estamos apenas no começo do caminho, pois, só quando contemplarmos a Deus face a face, esta graça se transformará em glória e chegaremos ao “estado de homem feito, a estatura própria da maturidade de Cristo” (Ef 4, 13).

A ideia da felicidade eterna

Esta é a felicidade absoluta da qual os Santos, já gozam em plenitude na eternidade e com a qual nenhuma consolação desta vida é comparável. Nossa ideia a propósito da felicidade é tão humana, que julgamos, muitas vezes, possuí-la em grau máximo ao obter algo que muito desejamos. A mera inteligência do homem não alcança a compreensão da felicidade do Céu, pois em relação a Deus somos como formigas que, andando pela terra, levantassem a cabeça para olhar o voo de uma águia no céu. A diferença entre uma formiga e uma águia é ridícula perto da infinitude existente entre a razão humana e a inteligência divina. E ainda que, dotados de uma capacidade incomum, passássemos trezentos bilhões de anos estudando, nosso verbo continuaria falho e não encontraríamos termos para nos expressarmos devidamente a respeito de Deus.

Um empréstimo da inteligência divina

Pois bem, em seu infinito amor, Deus quis dar às criaturas inteligentes, Anjos e homens, um empréstimo de sua luz intelectual, o lumen gloriæ. O eminente dominicano padre Santiago Ramírez define o lumen gloriæ como “um hábito intelectual operativo, infuso per se, pelo qual o entendimento criado se faz deiforme e torna-se imediatamente disposto à união inteligível com a própria essência divina, e se torna capaz de realizar o ato da visão beatífica”.

Esse “fazer-se deiforme” significa que quem entra na bem-aventurança e contempla a Deus face a face se torna semelhante a Ele, como afirma São João na continuação de sua Epístola: “Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é” (I Jo 3, 2b). Só no Céu veremos a Nosso Senhor Jesus Cristo de fato, uma vez que enquanto viveu na Terra ninguém O viu tal qual Ele é.

Sigamos o exemplo daqueles que nos precederam na graça e nos esperam na glória!

O homem, ainda quando privado da graça, tem uma apetência de infinito que não descansa enquanto não for saciada pela união com Deus. É o que revela Santo Agostinho, em suas Confissões: “E eis que Tu estavas dentro de mim e eu fora, e fora Te procurava; e, disforme como era, lançava-me sobre as coisas belas que criaste. Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de Ti aquelas coisas que, se não estivessem em Ti, não existiriam”.  Essa felicidade imensa e indescritível, para a qual todos nós somos criados, só a atingiremos seguindo os passos daqueles que nos precederam com o sinal da Fé e que já gozam dela, por sua fidelidade a tal chamado.

Peçamos que essa bem-aventurança eterna seja também para nós um privilégio, pelos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo, das lágrimas de Nossa Senhora e da intercessão de todos os Santos que hoje comemoramos, a fim de um dia nos encontrarmos em sua companhia no Céu. Enquanto lá não chegarmos, podemos nos relacionar com essa enorme plêiade de irmãos celestes, membros do mesmo Corpo, por um canal direto muito mais eficiente do que qualquer meio de comunicação moderno: a oração, o amor a Deus e o amor a eles enquanto unidos a Deus. Tenhamos a certeza de que, do alto, eles nos olham com benevolência, rogam por nós e nos protegem.

Obras consultadas:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol VII, Libreria Editrice Vaticana,
Città del Vaticano, 2013
 
RODRIGUES, Pe. Afonso, Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs, Tip da União Gráfica, Lisboa, 1932
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