By

Domingo de Ramos

   Na Antiguidade, os grandes heróis militares e os atletas vencedores eram saudados com ramos de palma, para honrá-los pelo triunfo alcançado. Portanto, Jesus quis que sua Paixão, cujo ápice se deu no Calvário, fosse marcada pelo triunfo já na abertura, antecipando a glória da Ressurreição que viria depois.

  À vista deste contraste podemos ficar surpresos: como a Igreja combina ambos os aspectos nesta circunstância?

   Este primeiro aspecto da celebração de hoje nos ensina o quanto é uma falha conceber a Redenção operada por Nosso Senhor centrando-se só na dor. Também, e talvez principalmente, ela comporta o gáudio da Ressurreição, pois, se os padecimentos de Jesus se estenderam da noite de Quinta-Feira até a hora nona de Sexta-Feira, e sua Alma tenha se separado do Corpo por cerca de trinta e nove horas ― como se pode deduzir das narrações evangélicas ―, o período de glória prolongou- -se por quarenta dias, aqui na Terra, e permanece por toda a eternidade no Céu.

   Foi esta a noção que faltou aos Apóstolos ao verem o Divino Mestre entristecer-Se, suar Sangue e deixar-Se prender por vis soldados; em consequência, O abandonaram. Nossa Senhora, pelo contrário, embora cheia de dor e com o coração transpassado por uma espada (cf. Lc 2, 35), não desfaleceu, porque guardava no fundo da alma a certeza de que seu Filho ressuscitaria.

Uma clave para considerar a Paixão do Senhor

   Contemplemos a Liturgia de hoje com esta perspectiva, revivendo aqueles momentos de gozo em que Jesus entra na Cidade Santa, com vistas a passarmos depois pelas angústias da Paixão e pelas alegrias da Ressurreição. Que as graças derramadas sobre todos os participantes dessa primeira procissão, na qual estava presente o Redentor, desçam sobre nós e cumulem nossas almas, fazendo-nos compreender bem o papel do sofrimento em nossa vida de católicos apostólicos romanos, enquanto meio indispensável para chegar à glória final e definitiva. Dor e triunfo encontram-se aqui magnificamente entrelaçados. Per crucem ad lucem! ― É pela cruz que alcançamos a luz!

A bondade divina manifestada na Paixão

   Para salvar a humanidade, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade quis Se encarnar, tornando-Se igual a nós em tudo, exceto no pecado.

   Aquele que, com um simples ato de vontade, poderia ter impedido a ação dos que promoveram sua morte, aceitou todos os ultrajes descritos por São Mateus no Evangelho da Missa.

   Experimentamos aqui a misericórdia de Deus, infinitamente solícito em nos perdoar. Se um só de nós houvesse incorrido em alguma falta e todos os demais homens fossem inocentes, teria Ele padecido igual martírio para resgatar esse único réu! Como aponta o padre Garrigou-Lagrange, no mistério da Redenção “as exigências da justiça terminam por se identificar com as do amor, e é a misericórdia que triunfa, porque é a mais imediata e profunda expressão do amor de Deus pelos pecadores”.

A maldade humana vinga-se do bem recebido

   Ante tanta benevolência, vemos o povo contente e reconhecendo autêntica e sinceramente estar ali, de fato, o Messias. Contudo, não de forma profunda, mas superficial e carente de raízes… Se hoje Jesus foi recebido com honras ― “Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto dos Céus!” ―, dentro de alguns dias essa mesma multidão estará na praça, diante do Pretório, preferindo Barrabás Àquele que antes acolhera com regozijo, e gritando “Seja crucificado!”, como lemos no texto da Paixão.

   Por quê? Pelo ódio dos que não querem aceitar o convite para uma mudança de vida.

Não devemos colocar nossa esperança no mundo

   A Paixão do Senhor nos mostra, de maneira eloquente, o quanto é preciso pôr nosso empenho em servi-Lo, pouco nos importando se nos atacam ou nos elogiam, se nos recebem ou nos repudiam, mas, isto sim, se Lhe agradamos com a nossa forma de proceder.

   Ao sermos batizados nos comprometemos ― seja por nós mesmos, seja na pessoa de nossos padrinhos ― a renunciar ao demônio, ao mundo e à carne, e ficamos marcados pelo sinal do combate. Não firmamos, em nenhum momento, o propósito de nos apoiarmos no aplauso dos outros. Assim sendo, ao celebrar o Domingo de Ramos devemos nos lembrar dessas promessas de luta, que exigem da nossa parte a determinação de enfrentar todas as batalhas que tais inimigos, por nós rejeitados no Batismo, nos apresentarão. E isso significa, a exemplo de Jesus, aceitar e carregar a cruz depositada sobre nossos ombros pela Providência.

A Cruz: de sinal de ignomínia a símbolo de glória

   Sim, Ele é Rei, e está sentado em seu trono. Que trono é esse? A Cruz, sinal de ignomínia por constituir o pior castigo, o suplício mais horrível daqueles tempos No entanto. tão poderoso é este Rei que, posto nesse pedestal de humilhação, Ele o transforma em trono de glória! Hoje em dia, ostentar a Cruz ao peito é uma honra, e nos admiramos ao vê-la sobre as coroas dos reis, nas grandes condecorações ou no alto das catedrais e dos edifícios eclesiásticos: é a exaltação da Cruz!

   Ao levar nas mãos, hoje, a palma como símbolo de triunfo, devemos crer que no Juízo Final toda a maldade será julgada e, entrando na eternidade, a História ficará bem definida: ou o gozo da visão beatífica ou o fogo que arderá sem nunca se extinguir. Não há terceira possibilidade.

O valor da luta

   Contrariamente à quimera sugerida por certa mentalidade muito alastrada, não é possível abolir a cruz da face da Terra, pois, em geral, todo ser humano sofre. Apenas nas produções cinematográficas e demais fantasias do gênero ― coroadas sempre pelo happy end ― encontramos figuras irreais de pessoas imunes a qualquer incômodo físico ou moral, bem-sucedidas em todos os seus empreendimentos e sem dificuldades no convívio social, não havendo sequer os pequenos aborrecimentos e decepções do cotidiano.

   Por mais que se fundem hospitais, por mais que se abram creches ou se construam abrigos para idosos, a dor é nossa companheira e só deixará de existir no Paraíso Celeste. É imprescindível ao homem, portanto, compreender o verdadeiro valor do sofrimento, pois uma impostação equivocada perante ele leva alguns a caírem no abatimento; outros, a revoltar-se contra a Providência; outros — quiçá a maioria — a querer se esquivar de carregar a própria cruz, tentativa que, além de ser inútil, a torna mais pesada, acrescentando-lhe o ônus da inconformidade com a vontade de Deus, que conhece e permite cada uma de nossas angústias.

   Se nossa existência transcorresse sem a presença de obstáculos, seríamos como um botão de rosa que nunca houvesse desabrochado ou um bebê que não crescesse nem se desenvolvesse, e jamais atingiríamos a plenitude espiritual de um concidadão dos Santos e habitante do Céu. O sofrimento constitui-se, então, um meio infalível de preparação para contemplar a Deus face a face.

A glória comprada pelo sofrimento

   Reportando-nos ao início da celebração do Domingo de Ramos, vemos que se a entrada triunfal em Jerusalém precedia as humilhações da Paixão, esta, por sua vez, prenunciava a verdadeira glorificação de Jesus, conforme suas próprias palavras aos discípulos de Emaús, depois da Ressurreição: “Porventura não era necessário que Cristo sofresse essas coisas e assim entrasse na sua glória?”

O combate do católico é sua glória

   A lição da Liturgia neste início de Semana Santa deve ser guardada na lembrança até o nosso último suspiro: somos combatentes! Não fomos feitos para apoiar aqueles que põem sua esperança no mundo, mas para defender Nosso Senhor Jesus Cristo.

   Nesta Semana Santa, unamo-nos a Nosso Senhor Jesus Cristo e façamos companhia a Nossa Senhora nas dores que ao longo dos próximos dias vão se descortinar diante de nossos olhos, com a certeza da glória que atrás delas espera para se manifestar.

Obra consultada: DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

By

2º Domingo da Quaresma

   São Paulo declara aos coríntios ter sido arrebatado ao Céu, em certo momento de sua vida, onde ouviu o que era impossível transmitir e menos ainda explicar: “foi arrebatado ao Paraíso e lá ouviu palavras inefáveis, que não é permitido a um homem repetir” (II Cor 12, 4).
Esse é o Céu, “o fim último e a realização de todas as aspirações mais profundas do homem, o estado de felicidade suprema e definitiva”; e essa é a glória que transparece no Tabor, ao transfigurar-Se o Senhor.

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha.

   O Divino Mestre se comprazia com o alto das montanhas, e ali procurava prodigalizar seus grandes mistérios.

   Nesse caso concreto, escolheu o Tabor talvez para simbolizar a necessidade de elevarmos nossos corações sobre as coisas deste mundo conforme as palavras de São Remígio: “Com isto o Senhor nos ensina que é necessário, para quem deseja contemplar a Deus, não se deixar atolar nos baixos prazeres, mas elevar a alma para as coisas celestiais, por meio do amor às realidades superiores.
Os comentários se multiplicam a propósito da razão de ter Jesus escolhido esses três Apóstolos para gozarem do convívio glorioso do Senhor. Um motivo claro e imediato salta logo aos olhos: estes veriam mais de perto as humilhações pelas quais passaria o Salvador. Como também era fundamental haver algumas testemunhas da glória de Jesus para sustentarem, na prova da Paixão, os Apóstolos em suas tentações.

E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o Sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz.

   No que terá consistido essa transfiguração? Evidentemente, não viram os Apóstolos a divindade do Verbo de Deus, inacessível aos olhos corporais. Viam apenas uma fímbria dos fulgores da verdadeira glória da humanidade sagrada de Jesus. É provável que fosse nada mais do que o dom da claridade da qual gozam os corpos gloriosos.

Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus.

   Esses dois grandes personagens aparecem na Transfiguração do Senhor, segundo nos assegura São João Crisóstomo, “para que se soubesse que Ele tinha poder sobre a morte e sobre a vida; por esta razão apresenta Moisés, que tinha morrido, e Elias, que ainda vivia”.

Então Pedro tomou a palavra e disse: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, e outra para Elias”.

   Pedro será confirmado em graça apenas em Pentecostes; até lá, sua loquacidade lhe confere o mérito da manifestação de fé na divindade de Jesus (cf. Mt 16, 16; Mc 8, 29; Lc 9, 20), ou o demérito da promessa temerária de jamais romper sua fidelidade (cf. Mt 26, 33-35; Mc 14, 29; Lc 22, 33; Jo 13, 37), ou da negação na casa do sumo sacerdote (cf. Mt 26, 69-74; Mc 14, 66-72; Lc 22, 55-60; Jo 18, 25-27). No Tabor, penetrado de desmedida alegria, deseja perpetuar aquela felicidade. Pedro não estava ainda suficientemente instruído pelo Espírito Santo para saber o quanto a Terra não era o ambiente para o gozo permanente. Não tinha noção de quanto as consolações são auxílios passageiros concedidos por Deus para nos estimular em seu serviço e a sofrer por Ele.

Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: “Este é o meu Filho amado, no qual Eu pus todo meu agrado. Escutai-O!”

   Nas Escrituras Sagradas, aparece algumas vezes esta ou aquela nuvem para simbolizar a presença de Deus e sua teofania. Várias são as passagens do Êxodo em que elas são utilizadas como sinais sensíveis da manifestação divina: “apareceu na nuvem a glória do Senhor!” (16, 10); “E logo que ele acabava de entrar, a coluna de nuvem descia e se punha à entrada da tenda, e o Senhor se entretinha com Moisés. À vista da coluna de nuvem, todo o povo, em pé à entrada de suas tendas, se prostrava no mesmo lugar” (33, 9-10), etc.
Se bem que sejamos verdadeiros filhos de Deus, como nos assegura o salmista — “Eu disse: Sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo” (Sl 81, 6) —, nós o somos por misericordiosa adoção. O Filho de Deus por natureza é um só: “O Filho de Deus veio e nos deu entendimento e luz para conhecer ao verdadeiro Deus” (I Jo 5, 20).

Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra.

   São Jerônimo procura nos explicar as razões desta queda dos Apóstolos: “Por três motivos caíram aterrorizados: porque compreenderam seu erro, porque ficaram envolvidos pela nuvem luminosa e porque ouviram a voz de Deus que lhes falava. E não podendo a fragilidade humana suportar tamanha glória, ela se estremece com todo o seu corpo e toda a sua alma, e cai por terra: pois o homem que não conhece sua medida, quanto mais queira elevar-se até as coisas sublimes, mais desliza até as baixas”.

Jesus Se aproximou, tocou neles e disse: “Levantai-vos, e não tenhais medo”.

   Além da onipotência de sua presença e de sua voz, Jesus quis tocá-los com sua própria mão. Esse fato nos faz recordar aquela passagem de Daniel: “uma mão me tocou, e fez com que me erguesse sobre os joelhos e as palmas das mãos” (10, 10). Tornou-se evidente para eles o quanto essa força partia de Jesus e não da natureza deles.

Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus.

   Desaparecem de seus olhos a Lei e os profetas. Agora entendem experimentalmente o quanto Jesus é o Esperado das Nações.

Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes: “Não conteis a ninguém esta visão, até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos”.

   Até mesmo no alto do Tabor terminam as alegrias, como sempre ocorre nesta Terra de exílio. É necessário descerem do monte todos aqueles que, ademais, são chamados à vida ativa.
E não deviam dizer nada a ninguém, “porque se fosse divulgada ao povo a majestade do Senhor, este mesmo povo se oporia aos príncipes dos sacerdotes e impediria a Paixão, e assim se retardaria a Redenção do gênero humano”.

   “Sou demasiadamente grande, e meu destino por demais nobre, para que eu me torne escravo de meus sentidos”. Esta foi a conclusão à qual chegou Sêneca por mera elaboração filosófica, sem ter a menor revelação de algo análogo à Transfiguração do Senhor. No Tabor, Jesus Cristo vai muitíssimo além: em sua divina didática, faz-nos conhecer uma parcela de sua glória nos reflexos da claridade própria a seu Corpo após a Ressurreição. Pálida exemplificação do que veremos no Céu, como fruto dos méritos de sua Paixão, dos fulgores de sua visão beatífica e da união hipostática. Como objetivo imediato, quis Ele fortalecer seus discípulos para assumirem com heroísmo as tristes provações de sua Paixão e Morte, à margem da manifestação de sua divindade. Porém, não era alheio aos seus divinos desígnios deixar consignado para a História quais são as verdadeiras e reais alegrias reservadas aos justos, post mortem.

  No Tabor a voz do Pai proclama: “Escutai-O!”. Esta recomendação se dirige sobretudo a nós, batizados, pois somos filhos adotivos de Deus e, portanto, já passamos por uma imensa transformação quando ascendemos à ordem sobrenatural, deixando de ser exclusivamente puras criaturas

   Confiemos nessa promessa com base nas garantias da Transfiguração do Senhor e peçamos à Mãe da Divina Graça que bondosamente nos auxilie com os meios sobrenaturais a chegarmos incólumes, decididos e seguros ao bom porto da eternidade: o Céu.

  Obra consultada:

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

By

5º Domingo do Tempo Comum

   Ao estudar a vida pública de Nosso Senhor Jesus Cristo, podemos comprovar a existência de um plano de apostolado muito bem traçado, lógico e coerente. Depois de quase trinta anos de vida oculta e da primeira fase de sua vida pública, chegado o momento de começar as suas mais importantes pregações, devia o Salvador escolher um centro estratégico a partir do qual anunciaria aos homens o Reino de Deus.

   Deixando a cidade de Nazaré, foi habitar em Cafarnaum. Situada ao leste da Galileia, nas terras que haviam pertencido às tribos de Zabulon e Neftali, a cidade contava, nos tempos evangélicos, entre 15 e 20 mil habitantes, e constituía o núcleo comercial dos arredores. Aos seus pés, o Lago de Genesaré. Cafarnaum encontrava-se em um lugar particularmente fecundo —, que serviria como fonte de inspiração das belas parábolas do Divino Mestre.

   Na área abarcada pela pregação de Jesus se levanta uma colina verdejante. Ele, “vendo as multidões” que tinham chegado de toda parte à sua procura, subiu a essa montanha e pronunciou seu mais sublime sermão, síntese de todos os seus ensinamentos.

   Contradizendo de modo frontal as máximas e os costumes vigentes em sua época, nas oito Bem-aventuranças o Divino Mestre prega “aos avarentos a pobreza, aos orgulhosos a humildade, aos voluptuosos a castidade, aos homens do ócio e do prazer o trabalho e as lágrimas da penitência, aos invejosos a caridade, aos vingativos a misericórdia e aos perseguidos as alegrias do martírio”. Não sem razão receberam estas Bem-aventuranças o título de “Carta Magna do Reino de Deus”.

   Logo depois de proclamá-las solenemente, Jesus vai Se dirigir sobretudo aos Apóstolos e discípulos, utilizando uma linguagem muito expressiva para lhes indicar as qualidades necessárias ao cumprimento de sua missão. E o faz diante de todos, de modo a tornar manifesta a obrigação daqueles mais chamados a guiar, ensinar e santificar os fiéis.

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: “Vós sois o sal da terra”.

   Foi o sal sempre muito apreciado e valorizado pela humanidade, por ser bom conservante dos alimentos e por realçar o seu sabor. No Império Romano o pagamento aos soldados era feito com ele ou também se destinava uma quantia em dinheiro para sua aquisição, originando o termo salário. 

   Ao afirmar: “Vós sois o sal da terra”, Nosso Senhor declara que seus discípulos — ou seja, todos os batizados — devem enriquecer o mundo propiciando um novo sabor ao convívio humano, evitando a brutalidade e a corrupção dos costumes.

   “Ora, se o sal se tornar insosso, com que salgaremos? Ele não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e ser pisado pelos homens”.

   Para bem compreendermos o que o Salvador nos quer ensinar com esta figura, podemos imaginar uma matéria neutra, semelhante à areia branca, finíssima, que ao ser objeto de um influxo passasse a ser sal. Ela salgaria porque transmitiria uma propriedade que não pertence à sua natureza, mas lhe foi infundida. Ora, se esse sal se tornasse insosso, voltaria a ser o que era antes, ou seja, areia!

   De modo análogo, pelo Sacramento do Batismo, que nos confere a graça santificante, somos elevados da ordem natural à ordem sobrenatural, e recebemos uma como que capacidade salífera para dar um novo sabor à existência e fazer bem aos outros. Todavia, o discípulo que perde a vida da graça e renuncia a ser “o sal da terra”, “não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e ser pisado pelos homens”.

 “Vós sois a luz do mundo”.

   Jesus nos convida exatamente a participar de sua própria missão, a mesma que fora proclamada pelo velho Simeão no Templo, quando, tomando o Menino Deus nos braços, profetizou que Ele seria “luz para iluminar as nações”

   Neste mundo imerso no caos e nas trevas, pela ignorância ou pelo desprezo dos princípios morais, os discípulos de Jesus  devem, com o auxílio da graça e o bom exemplo, iluminar e orientar as pessoas, ajudando-as a reavivar a distinção entre o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio, apontando o fim último da humanidade: a glória de Deus e a salvação das almas, que acarretará o gozo da visão beatífica.

    Para que isso se concretize, a condição é sermos desprendidos e admirativos de tudo o que no universo é reflexo das perfeições divinas, de modo a sempre procurarmos ver o Criador nas criaturas.

“Não pode ficar escondida uma cidade construída sobre um monte”.

   Relativamente próxima do monte das Bem-aventuranças se eleva a cidade de Safed, situada a cerca de mil metros de altitude. Supõe-se, então, que Jesus tenha feito alusão a ela nesta passagem, utilizando uma imagem familiar a todos os presentes. Ao mencionar a impossibilidade de permanecer oculta uma cidade com essas características, Nosso Senhor chama a atenção para a visibilidade de todas as ações do homem, a fortiori se ele recebeu uma missão especial de Deus: “fomos entregues em espetáculo ao mundo, aos Anjos e aos homens”. Nesse sentido, nada no agir humano é neutro, e tudo o que fazemos repercute no universo em benefício ou prejuízo das demais criaturas. Por conseguinte, temos a obrigação de irradiar o bem, pela palavra e pela vida.

“Ninguém acende uma lâmpada e a coloca debaixo de uma vasilha, mas sim, num candeeiro, onde ela brilha para todos os que estão na casa”.

   Postas em lugar alto para melhor difusão da luz, as lâmpadas de azeite, naquela época, eram em geral feitas de argila, sendo dotadas de dois orifícios: um para o azeite e outro para o pavio. A linguagem do Divino Mestre, como sempre, é ao mesmo tempo simples e muito cogente, e o exemplo não poderia ser mais significativo, pois só um insensato ocultaria uma lâmpada acesa debaixo de um alqueire — vasilha para medir cereais — ou de uma cama, onde, além de ser totalmente inútil, correria o risco de provocar um incêndio.

“Assim também brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos Céus”.

   Como lâmpadas a reluzir na escuridão, Nosso Senhor quer que os cristãos iluminem os homens com suas boas ações. Isto é, o bem precisa ser proclamado sem respeito humano e aos quatro ventos, num mundo que estadeia a luxúria e o ateísmo.

   Ao se encontrar em um ambiente hostil, o bom muitas vezes tende a se encolher, a se intimidar, quase se desculpando por não ser dos maus… o que é absurdo! Pelo contrário, devem a verdade e o bem gozar de plena cidadania, onde quer que seja.

   “Sejam os cristãos no mundo aquilo que a alma é no corpo”. Por isso, é necessário não ter receio de proclamar por toda parte a nossa Fé, a nossa vocação, a nossa determinação de seguir a Cristo. Expressivo nesse sentido é o célebre episódio da vida de São Francisco de Assis, ao convidar frei Leão para acompanhá- lo a uma pregação. Os dois simplesmente andaram pela cidade, imersos em sobrenatural recolhimento, e retornaram ao convento sem dizer uma palavra. Ao ser indagado acerca da pregação, o Santo respondeu ter ela sido realizada pelo fato de dois homens se mostrarem de hábito religioso pelas ruas, guardando a modéstia do olhar. É o apostolado do bom exemplo.

   Se isso era válido para o século XIII, quanto mais o será para os nossos dias! Por tal razão, sentimo-nos nós, Arautos do Evangelho, motivados ao uso cotidiano de nosso característico hábito: envergando-o sem respeito humano e manifestando de forma pública nossa inteira adesão à Santa Igreja, pomos em prática o mandato de Jesus.

   O Evangelho de hoje expressa com muita clareza a obrigação de cuidarmos de nossa vida espiritual não só pelo desejo da salvação pessoal.

   Nosso Senhor nos quer santos também com vistas a sermos sal e luz para o mundo! Enquanto sal, devemos empenhar- nos em fazer bem aos demais, pois temos a responsabilidade de lhes tornar a vida aprazível, sustentando-os na fé e no propósito de honrar a Deus.

   E seremos luz na medida  em que nos santificarmos, pois ensina a Escritura: “O olho é a luz do corpo. Se teu olho é são, todo o teu corpo será iluminado” (Mt 6, 22). Deste modo, nossa diligência, aplicação e zelo no cumprimento dos Mandamentos servirá ao próximo de referência, de orientação pelo exemplo, fazendo com que ele se beneficie das graças que recebemos. Assim, seremos acolhidos por Nosso Senhor, no dia do Juízo, com estas consoladoras palavras: “Em verdade Eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a Mim mesmo que o fizestes!”

   Em última análise, tanto o sal que não salga quanto a luz  que não ilumina são o fruto da falta de integridade. O discípulo, para ser sal e para ser luz, deve ser um reflexo fiel do Absoluto, que é Deus, e, portanto, nunca ceder ao relativismo, vivendo na incoerência de ser chamado a representar a verdade e fazê-lo de forma ambígua e vacilante. Procedendo desta maneira, nosso testemunho de nada vale e nos tornamos sal que só serve “para ser jogado fora e ser pisado pelos homens”. Quem convence é o discípulo íntegro que reflete em sua vida a luz trazida pelo Salvador dos homens.

  Peçamos, pois, à Auxiliadora dos Cristãos que faça de cada um de nós verdadeiras tochas que ardem na autêntica caridade e iluminam para levar a luz de Cristo até os confins da Terra.

 Obra consultada:  DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol VII, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

By

Festa da Apresentação do Senhor

   Bela como todas as passagens do Evangelho, a Liturgia do dia 2 de fevereiro focaliza o resgate do Menino Jesus e a Purificação de Nossa Senhora. Esses dois atos se passam dentro da casa do Senhor, o Templo de Jerusalém.

Em Jerusalém, havia um homem chamado Simeão, o qual era justo e piedoso..

   É bem o elogio e a essência correspondentes a um varão santo. São as características de uma ancianidade perfeita.

…e esperava a consolação do povo de Israel.

   É muito adequado o comentário de Santo Ambrósio a esse respeito. O velho Simeão não procurava a graça tão só para si; ele a queria para todo o povo. Compreendia, portanto, dessa forma quão mais importante é a graça para a coletividade do que para uma só pessoa. Era um varão conhecedor do papel relevante da opinião pública.

   Era um homem de grande fé. Cria nas promessas de Deus. De grande discernimento, pois sabia ser a libertação do pecado o consolo do povo, e não o mero término das opressões estrangeiras.

O Espírito Santo estava com ele…

   É o que se passa com toda alma em estado de graça. Mas, aqui, São Lucas parece querer indicar algo de mais profundo, ou seja, destacar que se trata de um verdadeiro profeta, conforme melhor transparecerá mais adiante, na promessa recebida e no fato de ter sido guiado ao encontro com Jesus e Maria.

…e lhe havia anunciado que não morreria antes de ver o Messias que vem do Senhor.

   A promessa de ver a Cristo Jesus também nos foi feita. Para tal acontecer, é necessário imitar Simeão, ser justo, temer a Deus e esperar contra toda a esperança.

Movido pelo Espírito, Simeão veio ao Templo.

   Tratava-se de uma alma que havia alcançado os píncaros da união transformante. Deixava-se conduzir pelo Espírito.

Quando os pais trouxeram o Menino Jesus para cumprir o que a Lei ordenava…

   Não nos esqueçamos de que o esposo era senhor e dono de todo fruto de sua mulher. Jesus pertencia a José, e, assim, este era mais que um pai adotivo.

…Simeão tomou o Menino nos braços…

São Beda assim se expressa sobre esta passagem: “Aquele homem recebeu o Menino Jesus em seus braços, segundo a Lei, para demonstrar que a justiça das obras, que, segundo a Lei, estavam figuradas pelas mãos e os braços, devia ser substituída pela graça, humilde certamente, mas revigorante, de fé evangélica.

   Porém, nós ainda recebemos mais do que Simeão, pois, na hora da Comunhão, nossa união com Cristo é muito mais íntima. Que Simeão nos obtenha a graça de comungar diariamente como ele mesmo teria gostado de fazê-lo.

…e bendisse a Deus: “Agora, Senhor, conforme a tua promessa, podes deixar teu servo partir em paz;  porque meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos…”

   Mais uma vez transparece, por suas próprias palavras, a fidelidade desse varão. Certamente suas forças estiveram para abandoná-lo várias vezes. Quais não devem ter sido suas súplicas a Deus para que não falhasse em sua divina promessa? Quantas vezes não terá sido provado: “Será que agora morrerei sem ter visto o Messias?”.

   Não O vimos, nem O vemos, mas, na Eucaristia, podemos unir-nos a Ele mais intimamente do que Simeão. Que felicidade a nossa!

“…luz para iluminar as nações e glória do teu povo Israel”.

   Sim, as outras nações não haviam recebido a Revelação. A glória cabia ao povo judeu; aos demais devia ser concedido o conhecimento da chegada do Salvador. Nesse momento estavam a caminho os três Reis Magos, que dariam ocasião à manifestação da missão universal do Menino Deus, a Epifania.

O pai e a Mãe de Jesus estavam admirados com o que diziam a respeito d’Ele.

   Assim haviam estado ao constatarem as manifestações angélicas e a presença dos pastores na Gruta em Belém. A mesma admiração se repetirá na chegada dos Reis do Oriente. Discerniam ambos a glória futura da Civilização Cristã, promovida pelo oferecimento de Jesus.

Simeão os abençoou e disse a Maria, a Mãe de Jesus…

   Cabia-lhe abençoar, pois era da raça de Levi, sacerdote, portanto. É à Corredentora que ele se dirige.

Este Menino vai ser causa tanto de queda como de reerguimento para muitos em Israel. Ele será um sinal de contradição”.

  São Beda, o Venerável, assim se expressa: “Com júbilo ouvem-se essas palavras, que exprimem haver sido destinado o Senhor a conseguir a ressurreição universal, conforme o que Ele mesmo disse: ‘Eu sou a ressurreição e a vida; o que crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá’ (Jo 11, 25). Mas quão terríveis soam aquelas outras palavras: ‘Este Menino vai ser causa tanto de queda como de reerguimento!’.

   “Verdadeiramente infeliz aquele que, depois de haver visto sua luz, fica, sem embargo, cego pela névoa dos vícios… porque, segundo o Apóstolo ‘melhor fora não terem conhecido o caminho da justiça, do que, depois de tê-lo conhecido, tornarem atrás, abandonando a lei que lhes foi ensinada’ (II Pd 2, 21).

   “Contradizem-No os judeus e gentios, e, o que é mais grave, os cristãos que, professando interiormente o Salvador, desmentem- No com suas ações”.

“Assim serão revelados os pensamentos de muitos corações”.

   Continua São Beda: “Antes da Encarnação, estavam ocultos muitos pensamentos, mas uma vez nascido na Terra o Rei dos Céus, o mundo se alegrou, enquanto Herodes se perturbava e com ele toda Jerusalém. Quando Jesus pregava e prodigalizava seus milagres, enchiam-se as turbas de temor e glorificavam o Deus de Israel; mas os fariseus e escribas acolhiam com raivosas palavras quantos ditos procediam dos lábios do Senhor e quantas obras realizava.

   “Quando Deus padecia na Cruz, riam com alegria néscia os ímpios, e choravam com amargura os piedosos; mas, quando ressuscitou dentre os mortos e subiu aos Céus, mudou- se em tristeza a alegria dos maus, e se converteu em gozo a pena dos amigos”.

   Ainda hoje e até o Juízo Final, os cristãos, outros Cristos, são “sinais de contradição” e, em função deles, revelar-se-ão os pensamentos escondidos nos corações de muitos.

“Quanto a Ti, uma espada Te traspassará a alma”.

   Maria é Corredentora do gênero humano. Essa profecia de Simeão, Ela já a conhecia. Mais ainda, estaria gravada em seu espírito até a ressurreição de Jesus. Ela é a Rainha dos Mártires e, desde a Anunciação, sofreria com Cristo, por Cristo e em Cristo.

   Nós somos convidados neste trecho do Evangelho a dar um caráter de holocausto às dores que nos forem permitidas pela Providência. Tenhamos amor às cruzes que nos cabem, unindo-nos a Jesus e a Maria nessa grandiosa cena da Apresentação.

 

 

Obra consultada:  DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol VII, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

 

 

%d blogueiros gostam disto: