A toalha de Natal

A  TOALHA  DE  NATAL

 

          Todas as  revistas costumam publicar um conto de Natal nesta altura do ano. E quantas vezes esse conto não passa de uma linda invenção. Mas este que o leitor terá diante dos olhos, ainda que pareça estranho, é verdadeiro e aconteceu há vários anos numa vila marítima dos Estados Unidos. 

          Um ciclone varreu as costas americanas. O redemoinho de vento se arremete com fúria em torno da igreja erguida numa elevação de terreno, próximo ao mar.

          O furacão faz estremecer as paredes do templo e deita abaixo uma vasta superfície de rebôco, ainda úmido, da parede por trás do altar-mor. O rebôco tinha sido recém colocado aí.

          Foi um aborrecido contratempo que o pároco teve que resolver, na antevéspera do Natal. Era preciso reparar essa brecha, que destoaria da solenidade de tão grande festa. Mas como? Não havia tempo e nem os pedreiros se prontificariam a repor a argamassa na parede danificada, ocupados que estavam em preparar a festa em família. De alguma forma era preciso remediar o desastre.      

          Com mais essa preocupação ocupando os preparativos para a Missa do Galo, o pároco vai a um leilão para o Natal das crianças carentes. Entre outras prendas, o leiloeiro apregoa uma grande e bonita toalha de mesa de quatro metros, adornada com primorosas rendas. Certamente pertenceu a alguma rica e nobre família da Europa.

          Uma idéia atravessa repentinamente o espírito do padre. Aquela grande toalha não seria o forro de tamanho ideal para cobrir o buraco que enfeiava a parede por cima do altar mor?

          Ele dá o lance, compra a toalha, leva para a igreja e manda encobrir com ela a parte da argamassa caída. Feliz e inspirada idéia!  Quem visse a toalha reluzir entre as dezenas de lampadinhas coloridas, e rodeada de ramos verdes de azevinho, pensaria que tinha sido posta ali de propósito para adorno do altar em dia tão solene. 

          No dia 24 ao meio-dia, o sacerdote dirige-se à igreja. Já próximo dela, ao passar pelo ponto de ônibus vê uma senhora de idade, de rosto triste, olhar cansado, aspecto de amargura e até de fome. No seu traje, pobre mas limpo, e em todo o seu semblante há qualquer coisa de distinto, que não a confunde com qualquer mulher.

          ¬ Minha senhora, se quiser, pode esperar na igreja. Ainda faltam três quartos de hora para a passagem do primeiro ônibus. Dentro da igreja estará mais abrigada e não apanhará tanto frio ¬ sugere o padre, delicadamente.

          ¬ Muito obrigada, aceito! ¬ responde ela com voz sumida. 

          Entra na igreja, benze-se e reza com devoção. De repente, dirige com pressa os passos para o altar-mor, onde o pároco e os ajudantes dão os últimos retoques nas pregas da toalha.

          ¬ Era minha essa toalha! Exclama surpresa. Foi o meu marido que mandou fazer em Bruxelas. Olhe, aqui estão as iniciais dos nossos dois nomes!

          ¬ Acabo de a comprar num leilão e está nessa parede para tapar o estuque que caiu  com o ciclone de ontem.

          ¬ Gosto muito que esta toalha, de tantas saudades, sirva para adornar a casa de Deus.

          ¬ Por que é que a senhora a vendeu? ¬ pergunta com interesse o sacerdote.

          ¬ Vendi-a, como tenho vendido tudo quanto possuía. Pouco a pouco vou me desfazendo de todas as coisas: jóias, cobertores, a própria roupa do meu uso. Tudo tenho vendido para não morrer de fome.

          ¬ Roubaram-na?  Perdeu o que tinha em algum banco que faliu?

          ¬ Não, senhor padre. Explico tudo. Eu vivia em Viena de Áustria com o meu marido. Éramos felizes e nada nos faltava. Quando os nazistas invadiram a nossa pátria, fugi para a Suíça com o que consegui levar. O meu marido foi preso pelos alemães. Nunca mais soube nada dele. Morreu certamente em algum campo de concentração. Já lhe rezei tanto pela alma! Se ao menos soubesse com certeza que o meu marido tinha morrido, mas nem isso sei. 

          ¬ Minha senhora ¬ diz o pároco ¬ sou pobre, mas ajudá-la-ei no que puder. Tenho muito gosto em lhe oferecer a colcha para pôr na mesa nesta noite de Natal.

          ¬ Muito obrigada, senhor padre, mas não devo aceitar. Fica aqui melhor do que no miserável quarto em que vivo, onde nem sequer a poderia estender. Já estou resignada a nunca mais sair da pobreza.

          ¬ Mas por que não se oferece para governanta ou dama de companhia, ou mesmo professora de línguas? ¬ sugere o sacerdote, compadecido.

          ¬ Já várias vezes tentei oferecer-me para governanta, mas ninguém aceita. Acham-me cansada, fraca e velha demais.

          A senhora retirou-se humildemente para o ponto de ônibus, enquanto o sacerdote pensava no caso.  ¬ Que Natal tão triste o dessa mulher!    

          É noite. Bimbalham alegremente os sinos para a Missa da meia-noite, a Missa do Galo.

          Os fiéis acorrem de toda parte para a igreja, contentes, satisfeitos, bem defendidos do frio.

          Todos olham maravilhados para a toalha que rebrilha mais bela que nunca. O fulgor de centenas de lâmpadas faz ressaltar aos bordados a ouro e os adornos de marfim. Que bela idéia a do nosso pároco em ter colocado essa bonita colcha ali ¬ pensa o povo admirado.

          Começa a Missa. Os pequenos cantores entoam maravilhosos cânticos ao Menino Jesus, que no momento do Glória aparece lindo e corado no presépio entre Nossa Senhora, São José , os pastores e os reis magos.

          No fim todos depõem um beijo quente no pezinho rechonchudo do Divino Menino. 

          O povo vai saindo para o aconchego confortador de suas casas. Na igreja só fica um homem que diz ao sacerdote, quando ele também está para sair:

          Senhor padre, durante a Missa estive um pouco distraído a olhar para a toalha que puseram por cima do altar-mor. Quando eu vivia em Viena de Áustria com a minha saudosa esposa, tínhamos uma toalha igual. Se não for aquela, era parecidíssima. A minha mulher só a estendia na mesa quando o senhor Cardeal era hóspede em nossa casa. Tempos felizes, aqueles. A minha mulher fugiu para a Suíça quando os alemães invadiram a Áustria. Nunca mais soube nada dela. Suponho que já terá morrido.

          ¬ E se ela aparecesse?

          ¬ Seria o dia mais feliz da minha vida. Mas o senhor padre sabe alguma coisa dela?

          ¬ Talvez. Esta tarde esteve aqui na igreja uma senhora e disse-me que esta toalha tinha sido dela, que seu marido a tinha mandado vir de Bruxelas.

          ¬ E como era essa senhora? ¬ perguntou o homem.

          ¬ Era alta e deve andar pelos sessenta anos. Pela pronúncia notei logo que não era americana. Disse-me que vivia em Viena antes da invasão dos alemães e que o seu nome e do marido estavam marcados na toalha.

          ¬ É, sem dúvida, a minha mulher. Bendito seja Deus! Mas como é que a hei de encontrar?

         ¬ A estas horas da noite é impossível. Rezemos ambos ao Menino Jesus para que a faça aparecer. Venha às Missas da manhã para ver se a encontra aqui. 

          O bom homem, que exercia agora o ofício de relojoeiro numa ourivesaria importante, passou o resto da noite em sobressalto. Que ânsias as de tornar a ver a sua dedicadíssima companheira!

          Pela manhã, lá está na igreja. Mas a mulher infelizmente não veio àquelas Missas. O sacerdote avisa o povo. Sai com o senhor austríaco guiando-se pelas informações que lhe fornecessem.

          Pouco antes do meio-dia já os dois esposos se abraçam. Como descrever aquela cena! Que efusão de sentimentos! Após tantos anos de dolorosa separação, sem nada saberem um do outro, raiou novamente a alegria naqueles dois corações. O que a ambos parecia impossível, realizava-se. Vêem-se, abraçam-se, tornam a viver unidos na paz e felicidade de um lar modesto. Foi o Natal mais feliz de suas vidas.

          Era um milagre da bondade do Menino Jesus, que no dia do seu nascimento quis alegrar aqueles dois bons cristãos com a maior felicidade que podiam desejar na terra. 

 

                                                                                                          Jornal “A Presença” – Lisboa- Portugal

                                                                                                                        Dezembro de 1997 – nº166