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6º Domingo do Tempo Comum

   Deus implantou na alma humana uma luz intelectual pela qual o homem conhece que o bem deve ser praticado e o mal, evitado. Essa luz não se apagou com o primeiro pecado, mas permanece em nossa alma. Conforme afirma o Concílio Vaticano II, o homem “tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus”, a lei natural.

   E como nosso espírito é governado por uma lógica monolítica, não conseguimos praticar qualquer ação má sem procurar justificá-la de alguma maneira. Por isso, para poder pecar, o homem recorre a falsas razões que sufocam sua reta consciência e levam o entendimento a apresentar à vontade o objeto desejado como um bem. É essa a origem dos sofismas e doutrinas errôneas com os quais procuramos dissimular nossas más ações.

  À vista disso, tornou-se indispensável a existência de preceitos concretos a lembrar-nos de forma clara e insofismável o conteúdo da lei natural. São eles os Dez Mandamentos entregues por Deus a Moisés no Monte Sinai.

   Face a toda norma jurídica, há sempre duas correntes: a dos laxistas que, em nome da “moderação”, justificam sua inobservância com todo gênero de ardis e racionalizações; e a dos exagerados, apreciadores da Lei pela Lei, abstraindo do seu verdadeiro espírito e do seu vínculo com o Legislador.

   Na segunda categoria estavam os escribas e fariseus. Julgando-se os únicos donos da verdade, os doutores da Lei se serviram de sua autoridade para criar uma moral baseada nas exterioridades, enquanto o orgulho, a inveja, a ira e outros vícios borbulhavam sem freio em seus corações.

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: “Não penseis que vim abolir a Lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento”.

   Em que consiste, o “pleno cumprimento” anunciado pelo Messias?

   A Antiga Lei era, segundo São Tomás, a da sombra, pois apenas figurava com alguns atos cerimoniais e prometia por palavras a justificação dos homens. A Nova, entretanto, é a da verdade, porque realiza em Cristo tudo quanto a Lei Antiga prometia e figurava. Ou seja, a Lei Nova realiza a Antiga enquanto supre o que faltara a esta.

“Em verdade, Eu vos digo: antes que o Céu e a Terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra”.

   Os adeptos da chamada “moral de situação” defendem a mutabilidade dos princípios éticos em função do contexto no qual são eles aplicados. Segundo essa filosofia, se os costumes evoluem ao longo dos tempos, o mesmo deve ocorrer com as normas morais. Ou então, mesmo admitindo serem elas universais e perenes, deve-se evitar sua aplicação de forma absoluta nas situações concretas, reduzindo seu valor ao de meras orientações a serem ponderadas em função das circunstâncias do momento.

   Ora, a Lei sintetizada nos preceitos do Decálogo é absoluta e permanente, conforme ensina o Catecismo da Igreja Católica: “Visto que exprimem os deveres fundamentais do homem para com Deus e para com o próximo, os Dez Mandamentos revelam, em seu conteúdo primordial, obrigações graves. São essencialmente imutáveis, e sua obrigação vale sempre e em toda parte. Ninguém pode dispensar-se deles”. Por conseguinte, aquilo que era pecado quando Adão e Eva saíram do Paraíso, sê-lo-á também até o último dia, quando for morto o Anticristo e vier o fim do mundo.

“Portanto, quem desobedecer a um só destes Mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será considerado o menor no Reino dos Céus. Porém, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino dos Céus”.

   Ora, pior que desobedecer aos preceitos da Lei divina é criar ou propagar uma doutrina que convide a transgredi-los. Quem assim procede perde, sem dúvida, a graça de Deus e, caso não se emendar, “será considerado mínimo no momento do Juízo; ou seja, será reprovado, será o último. E o último cairá inexoravelmente no inferno”.

“Porque Eu vos digo: Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”.

   Os escribas e fariseus conheciam a Lei em sua perfeição e sabiam pesar cada ato em função dela. sua justiça fundava-se nas exterioridades. “Quanto ao repouso sabático, haviam eles multiplicado as interdições, entrando nos mais ínfimos detalhes. Sobre a questão das impurezas, deram livre curso à imaginação e acrescentaram à legislação mosaica as mais minuciosas prescrições”.

   Jesus nos adverte aqui ser indispensável, para entrar no Reino dos Céus, praticar uma virtude “maior” que a dos fariseus e mestres da Lei. Ou seja, não se prender às exterioridades, nem fazer enganosas racionalizações, mas cumprir de fato em sua integridade, amorosamente, os Dez Mandamentos.

“Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal’. Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo; quem disser ao seu irmão: ‘patife!’ será condenado pelo tribunal; quem chamar o irmão de ‘tolo’ será condenado ao fogo do inferno. Portanto, quando tu estiveres levando a tua oferta para o altar, e aí te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta aí diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão. Só então vai apresentar a tua oferta”.

   Os fariseus consideravam o homicídio um pecado gravíssimo, mas não reputavam ser falta moral encolerizar-se com o irmão, ou dizer-lhe toda espécie de desaforos.

   Com sua palavra e exemplo, ensinou Jesus que na Nova Aliança o relacionamento entre os homens deve, pelo contrário, pautar-se pelo respeito, consideração e estima, de forma a não dar ocasião a qualquer queixa recíproca.

“Procura reconciliarte com teu adversário, enquanto caminha contigo para o tribunal. Senão o adversário te entregará ao juiz, o juiz te entregará ao oficial de justiça, e tu serás jogado na prisão. Em verdade Eu te digo: dali não sairás, enquanto não pagares o último centavo”.

   O “adversário” de que fala Nosso Senhor neste versículo simboliza, sob certo prisma, Ele mesmo: o Bem substancial do qual nos tornamos inimigos ao pecar. O mais necessário e urgente, portanto, é procurar primeiro nos reconciliar com Ele, reconhecendo as nossas faltas, pedindo perdão por elas e fazendo firme propósito de doravante não nos desviarmos das retas vias do Redentor. Pois, cedo ou tarde, terminará nossa peregrinação terrena e compareceremos diante do Supremo Juiz, que pronunciará uma sentença justíssima e inapelável. Se nesse dia nosso Divino Adversário ainda tiver algo a declarar contra nós, a dívida será saldada, na melhor das hipóteses, no fogo do Purgatório, do qual não se sai sem pagar até o último centavo.

“Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração. Se o teu olho direito é para ti ocasião de pecado, arranca-o e joga-o para longe de ti! De fato, é melhor perder um de teus membros, do que todo o teu corpo ser jogado no inferno. Se a tua mão direita é para ti ocasião de pecado, corta-a e joga-a para longe de ti! De fato, é melhor perder um dos teus membros, do que todo o teu corpo ir para o inferno”.

   “Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração”: refere-Se aqui Nosso Senhor ao Nono Mandamento do Decálogo, o qual condena também o pecado interior: “Não cobiçarás a mulher do teu próximo” (Dt 5, 21).

  Logo a seguir, o Divino Mestre frisa a radicalidade com que devem ser praticados os Mandamentos, exortando-nos a levar até os últimos extremos o princípio da fuga das ocasiões de pecado. “Vigiai e orai para que não entreis em tentação” (Mt 26, 41), dirá Ele no Horto das Oliveiras. A oração é indispensável, mas não suficiente: é também necessário vigiar e afastar- se completamente daquilo que conduz ao pecado, sobretudo em matéria de castidade.

“Foi dito também: ‘Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de divórcio’. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por motivo de união irregular, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada comete adultério”.

   Moisés estabeleceu no Deuteronômio que “se um homem, tendo escolhido uma mulher, casar-se com ela, e vier a odiá-la por descobrir nela qualquer coisa inconveniente, escreverá uma letra de divórcio, lha entregará na mão e a despedirá de sua casa” (24, 1). Ora, as interpretações laxistas dessa passagem bíblica deram margem a escandalosos abusos, a ponto de ser o divórcio, segundo o Cardeal Gomá, “um mal gravíssimo do povo judeu, no tempo de Jesus”.

   Com efeito, explica Fillion: “As palavras ‘coisa inconveniente’ utilizadas pelo Deuteronômio eram de si vagas. Mas tinham recebido de Hilel e dos de sua escola uma interpretação escandalosa, que abria de par em par as portas para a paixão. Admitiam que a mulher, mesmo fidelíssima, podia ser despedida por qualquer motivo ou, digamos melhor, por qualquer frívolo pretexto. Um prato mal preparado, a vista de uma mulher mais formosa — atreviam-se a dizer os rabinos — eram razão para o divórcio”.

   Acrescia-se a isto o fato de o divórcio não ser conforme à lei natural. Como mais adiante afirmará o próprio Nosso Senhor, tratava-se de uma concessão temporária feita por Moisés devido à dureza de coração dos hebreus, “mas no começo não foi assim” (Mt 19, 8).

   Comenta a este propósito São Cromácio de Aquileia: “Com razão, nosso Senhor e Salvador, eliminada aquela permissão, restaura agora os preceitos de sua antiga constituição. Ordena, pois, conservar como lei indissolúvel a união do matrimônio casto, mostrando que a lei conjugal estava instituída originariamente por Ele”.

“Vós ouvistes também o que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso’, mas ‘cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor’. Eu, porém, vos digo: Não jureis de modo algum: nem pelo Céu, porque é o trono de Deus;  nem pela Terra, porque é o suporte onde apoia os seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do Grande Rei. Não jures tampouco pela tua cabeça, porque tu não podes tornar branco ou preto um só fio de cabelo”. 

  No tempo de Jesus, o abuso de jurar a qualquer propósito alcançara um grau inacreditável, e isso O levou a condenar explicitamente, neste Sermão da Montanha, todo tipo de juramento.

   Ocorria que, levados pelo orgulho, julgaram os fariseus haver maior honra e mérito em “fazer todas as coisas por Deus, obrigando-se por juramento”; e do preceito “não tomarás o nome de Deus em vão” deduziram, por uma interpretação forçada: “logo, tomarás o nome de Deus sempre que seja como garantia de algo que não seja falso”.

   Entre os cristãos, pelo contrário, devem reinar a sinceridade e a confiança, fruto da retidão de almas habitualmente em estado de graça, conforme ensina Santo Hilário de Poitiers: “A fé elimina-o costume frequente de jurar. Fundamenta na verdade a atividade de nossa vida e, rechaçando a inclinação para mentir, prescreve a lealdade tanto no falar como no ouvir… Portanto, quem vive na simplicidade da fé não precisa recorrer a juramentos”

“Seja o vosso ‘sim’: ‘Sim’, e o vosso ‘não’: ‘Não’. Tudo o que for além disso vem do maligno”.

   A isso nos convida o Papa João Paulo II: “Aprendei a pensar, a falar e atuar segundo os princípios da simplicidade e da clareza evangélica: ‘Sim, sim; não, não’. Aprendei a chamar de branco ao branco, e preto ao preto — mal ao mal, e bem ao bem. Aprendei a chamar pecado ao pecado, e a não lhe chamar libertação e progresso, ainda que toda a moda e a propaganda fossem contrárias”.

   A leitura do Evangelho deste domingo nos reporta a um  dos problemas mais graves do mundo moderno: a terrível perda do senso moral que assola as almas de tantos dos nossos contemporâneos.

   Com efeito, afirma Bento XVI, “vivemos num contexto cultural marcado pela mentalidade hedonista e relativista, que propende para eliminar Deus do horizonte da vida, não favorece a aquisição de um quadro claro de valores de referência e não ajuda a discernir o bem do mal e a maturar um justo sentido do pecado”.

   Aproveitemos esta Liturgia do 6º Domingo o Tempo Comum para analisarmos nossa consciência à procura de alguma racionalização que nos esteja conduzindo a concessões morais, em nossa vida profissional ou particular.

Obra consultada:  DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol VII, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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