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4º Domingo da Quaresma – Domingo Laetare

   O trecho do Evangelho deste domingo apresenta Nosso Senhor pouco depois de sair do Templo, onde acabara de ter uma das mais ardentes polêmicas com os fariseus, encerrada por Ele com uma solene declaração de sua divindade, ao afirmar com fórmula de juramento: “Em verdade, em verdade vos digo, antes que Abraão fosse, Eu sou” (Jo 8, 58). Os fariseus “pegaram então em pedras para Lhas atirar” (Jo 8, 59). Tinham a intenção de matá-Lo, mas não conseguiram, pois Ele Se esquivou e saiu do Templo, “porque ainda não era chegada sua hora” (Jo 8, 20).

   Logo após essa dramática cena, Jesus fez diante de todo o povo o estrondoso milagre que servirá para confirmar a veracidade de suas palavras a respeito de sua sobrenatural origem.

Naquele tempo, ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença. Os discípulos perguntaram a Jesus: “Mestre, quem pecou para que nascesse cego: ele ou os seus pais?” Jesus respondeu: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas isso serve para que as obras de Deus se manifestem nele. É necessário que nós realizemos as obras d’Aquele que Me enviou, enquanto é dia. Vem a noite, em que ninguém pode trabalhar. Enquanto estou no mundo, Eu sou a Luz do mundo”.  

   A crença de que os males físicos eram sempre consequência de algum pecado estava muito arraigada não só nos judeus, mas também nos povos pagãos contemporâneos de Cristo. No presente caso, porém, declara taxativamente o Mestre que essa cegueira foi permitida desde toda a eternidade, para dar ensejo à manifestação de seu poder divino sobre a natureza.

Dito isto, Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego. E disse-lhe: “Vai lavar-te na piscina de Siloé” (que quer dizer: Enviado). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando.

   Causa surpresa o fato de Jesus cuspir no chão, fazer lama, passar nos olhos do doente e depois dar-lhe ordem de ir lavar-se.

   Bem observa, a este propósito, o mesmo São João Crisóstomo: “Cuspiu no chão para eles não atribuírem um poder milagroso à água dessa piscina e para entenderem que saiu de sua boca a misteriosa energia que regenerou os olhos do cego e os abriu. É por isso que o Evangelista diz: ‘Fez lama com a saliva’. Em seguida, para evitar que se pensasse num poder secreto da terra, mandou-o ir lavar-se”.

   Primeiro quis o Divino Mestre que todos os circunstantes vissem o cego com barro nos olhos, e isso, certamente, causou viva impressão. Em seguida, ao retornar o homem curado, ficaria patente perante eles quem era o Autor da cura. Para um povo duro de coração como aquele, era preciso não haver dúvida a tal respeito. Daí ter Jesus utilizado a própria saliva, misturando-a com a terra, duas matérias incapazes por si de operar a cura, ressaltando provir d’Ele o poder sobrenatural. Pode-se observar que os detalhes do episódio foram divinamente dispostos para produzir nos presentes o grande efeito narrado pelo Evangelista

   “Note-se como o cego tinha a disposição de obedecer em tudo. […] seu único objetivo foi o de obedecer a quem lhe ordenava. Nada pôde dissuadi-lo, nada constituiu obstáculo”. Ele fez exatamente o que Nosso Senhor mandara, e foi recompensado.

Os vizinhos e os que costumavam ver o cego — pois ele era mendigo — diziam: “Não é aquele que ficava pedindo esmola?” Uns diziam: “Sim, é ele!” Outros afirmavam: “Não é ele, mas alguém parecido com ele”. Ele, porém, dizia: “Sou eu mesmo!” Então lhe perguntaram: “Como é que se abriram os teus olhos?” Ele respondeu: “Aquele homem chamado Jesus fez lama, colocou-a nos meus olhos e disse-me: ‘Vai a Siloé elava-te’. Então fui, lavei-me e comecei a ver”.  Perguntaram-lhe: “Onde está Ele?” Respondeu: “Não sei”. 

   Um fato tão extraordinário como este foi motivo de grande sensação, comentários e discussões entre “os vizinhos e os que costumavam ver o cego” pedindo esmolas. O sintético relato evangélico não especifica se houve manifestações de entusiasmo, de incredulidade ou de ódio. Contudo, parece certo que a primeira reação de alguns foi, pelo menos, de ignorar a evidência da cura milagrosa. Indício disso é o tom reservado das respostas do feliz beneficiário do milagre. 

Levaram então aos fariseus o homem que tinha sido cego. Ora, era sábado, o dia em que Jesus tinha feito lama e aberto os olhos do cego. Novamente, então, lhe perguntaram os fariseus como tinha recuperado a vista. Respondeu-lhes: “Colocou lama sobre meus olhos, fui lavar-me e agora vejo!” Disseram, então, alguns dos fariseus: “Esse homem não vem de Deus, pois não guarda o sábado”. Mas outros diziam: “Como pode um pecador fazer tais sinais?” E havia divergência entre eles. Perguntaram outra vez ao cego: “E tu, que dizes daquele que te abriu os olhos?” Respondeu: “É um profeta”. Então, os judeus não acreditaram que ele tinha sido cego e que tinha recuperado a vista.

   A par do desentendimento instalado entre os fariseus a propósito do acontecimento, esses versículos tornam patentes dois aspectos do estado de espírito deles. A má-fé e a dureza de coração.

Chamaram os pais dele  e perguntaram-lhes: “Este é o vosso filho, que dizeis ter nascido cego? Como é que ele agora está enxergando?” Os seus pais disseram: “Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego.  Como agora está enxergando, isso não sabemos. E quem lhe abriu os olhos também não sabemos. Interrogai-o, ele é maior de idade, ele pode falar por si mesmo”. Os seus pais disseram isso, porque tinham medo das autoridades judaicas. De fato, os judeus já tinham combinado expulsar da comunidade quem declarasse que Jesus era o Messias. Foi por isso que seus pais disseram: “É maior de idade. Interrogai-o a ele”.

   Não tiveram dificuldade os pais do cego em perceber a malícia e o ódio que imperavam nesse inquérito dos fariseus. E tinham motivos de sobra para temê-los, pois a expulsão da sinagoga poderia ter graves consequências no campo civil, como o desterro e o confisco dos bens. Por isso preferiram cortar qualquer possibilidade de fazer algum pronunciamento a respeito de Jesus: “Não sabemos, perguntai ao nosso filho, ele é maior de idade”.

Então, os judeus chamaram de novo o homem que tinha sido cego. Disseram-lhe: “Dá glória a Deus! Nós sabemos que esse homem é um pecador”. Então ele respondeu: “Se Ele é pecador, não sei. Só sei que eu era cego e agora vejo”. Perguntaram-lhe então: “Que é que Ele te fez? Como te abriu os olhos?” Respondeu ele: “Eu já vos disse, e não escutastes. Por que quereis ouvir de novo? Por acaso quereis tornar-vos discípulos d’Ele?” Então insultaram-no, dizendo: “Tu, sim, és discípulo d’Ele! Nós somos discípulos de Moisés. Nós sabemos que Deus falou a Moisés, mas esse, não sabemos de onde é”. Respondeu-lhes o homem: “Espantoso! Vós não sabeis de onde Ele é? No entanto, Ele abriu-me os olhos! Sabemos que Deus não escuta os pecadores, mas escuta aquele que é piedoso e que faz a sua vontade. Jamais se ouviu dizer que alguém tenha  aberto os olhos a um cego de nascença. Se este homem não viesse de Deus, não poderia fazer nada”. Os fariseus disseram-lhe: “Tu nasceste todo em pecado e estás no  ensinando?” E expulsaram-no da comunidade.

   Nota-se nestes versículos, mais uma vez, sua malévola insistência na tentativa de obter do miraculado uma declaração contra o Senhor.

   Comenta, a esse respeito, Santo Agostinho: “Depois de muitas coisas, foi excluído da sinagoga dos judeus aquele que era cego e agora enxergava. Enfureceram-se contra ele e o expulsaram. E era isso que temiam seus pais, conforme foi declarado pelo Evangelista. […] Temiam, pois, eles serem enxotados da sinagoga; ele não temeu e foi enxotado; os pais permaneceram nela. Mas ele é acolhido por Cristo e pode dizer: ‘Porque meu pai e minha mãe me abandonaram’. Que acrescentou? ‘O Senhor, porém, tomou-me sob a sua proteção’. Vem, ó Cristo, e recebe-o; eles o excomungaram, acolhe-o Tu. Tu, o Enviado, acolhe o excluído”.

Jesus soube que o tinham expulsado. Encontrando-o, perguntou-lhe: “Acreditas no Filho do Homem?” Respondeu ele: “Quem é, Senhor, para que eu creia n’Ele?” Jesus disse: “Tu O estás vendo; é Aquele que está falando contigo”. Exclamou ele: “Eu creio, Senhor!” E prostrou-se diante de Jesus.

   O objetivo de São João, ao narrar este episódio, era, sem dúvida, tornar evidente o seguinte ponto: ao ser curado da cegueira, aquele homem recebeu também a crença na divindade de Cristo.

   É razoável considerar que este milagre tenha concorrido muito para confirmar na fé os próprios Apóstolos e, ademais, lhes haver dado a possibilidade de ponderar o quanto vale mais a conversão espiritual do que a cura da cegueira material.

Então, Jesus disse: “Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não veem, vejam, e os que veem se tornem cegos”.

   Santo Agostinho assim comenta esta passagem: “Embora todos, ao nascer, tenhamos contraído o pecado original, nem por isso nascemos cegos; contudo, considerando bem, nascemos cegos nós também. Com efeito, quem não nasceu cego? Cego de coração. Mas o Senhor, que fizera ambas as coisas, os olhos e o coração, curou tanto uns quanto o outro”.

Alguns fariseus, que estavam com ele, ouviram isto e lhe disseram: “Porventura, também nós somos cegos?” Respondeu-lhes Jesus: “Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas como dizeis: ‘Nós vemos’, o vosso pecado permanece”.

   À interpelação de alguns fariseus, Nosso Senhor responde com uma impressionante increpação. Com efeito, se, apesar de todas as obras por Ele realizadas, alguém O considera apenas de modo natural e humano, sem reconhecer sua divindade, esse é, de fato, um cego de alma, um cego de coração. Pelo contrário, quem padece de cegueira corporal, mas, por ação da graça, acredita na divindade do Messias, este foi curado da cegueira espiritual, cura incomparavelmente mais importante que a da cegueira física. Pois, como afirma o Apóstolo, “as coisas que se veem são temporais e as que não se veem são eternas” (II Cor 4, 18).

   O cerne deste Evangelho nos é sintetizado por São Paulo em sua Epístola aos Efésios (5, 8-14), também proposta à nossa consideração neste Domingo da Alegria: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor” (Ef 5, 8).

   Apresentando-nos esse magnífico Evangelho sobre a luz, no 4º Domingo da Quaresma, a Igreja nos proporciona um particular alento para avançarmos com ânimo resoluto na vida espiritual. Às vezes fraquejamos, deixamo-nos arrastar por nossas más inclinações e sentimos periclitar nossa perseverança nas vias da santificação. Nesses momentos, lembremo-nos da cura do cego de nascença e consideremos que, se Deus permitiu que caíssemos numa debilidade, Ele está atento para intervir a qualquer instante e restaurar em nós a vida divina. Com as orações e a mediação maternal de Maria, nos encontraremos purificados para contemplar a luz do Círio Pascal, símbolo também dessa Luz que nos foi dada com a Ressurreição de Cristo e que nos vem através dos Sacramentos.

 

Obra consultada

DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol I, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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6º Domingo do Tempo Comum

   Deus implantou na alma humana uma luz intelectual pela qual o homem conhece que o bem deve ser praticado e o mal, evitado. Essa luz não se apagou com o primeiro pecado, mas permanece em nossa alma. Conforme afirma o Concílio Vaticano II, o homem “tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus”, a lei natural.

   E como nosso espírito é governado por uma lógica monolítica, não conseguimos praticar qualquer ação má sem procurar justificá-la de alguma maneira. Por isso, para poder pecar, o homem recorre a falsas razões que sufocam sua reta consciência e levam o entendimento a apresentar à vontade o objeto desejado como um bem. É essa a origem dos sofismas e doutrinas errôneas com os quais procuramos dissimular nossas más ações.

  À vista disso, tornou-se indispensável a existência de preceitos concretos a lembrar-nos de forma clara e insofismável o conteúdo da lei natural. São eles os Dez Mandamentos entregues por Deus a Moisés no Monte Sinai.

   Face a toda norma jurídica, há sempre duas correntes: a dos laxistas que, em nome da “moderação”, justificam sua inobservância com todo gênero de ardis e racionalizações; e a dos exagerados, apreciadores da Lei pela Lei, abstraindo do seu verdadeiro espírito e do seu vínculo com o Legislador.

   Na segunda categoria estavam os escribas e fariseus. Julgando-se os únicos donos da verdade, os doutores da Lei se serviram de sua autoridade para criar uma moral baseada nas exterioridades, enquanto o orgulho, a inveja, a ira e outros vícios borbulhavam sem freio em seus corações.

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: “Não penseis que vim abolir a Lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento”.

   Em que consiste, o “pleno cumprimento” anunciado pelo Messias?

   A Antiga Lei era, segundo São Tomás, a da sombra, pois apenas figurava com alguns atos cerimoniais e prometia por palavras a justificação dos homens. A Nova, entretanto, é a da verdade, porque realiza em Cristo tudo quanto a Lei Antiga prometia e figurava. Ou seja, a Lei Nova realiza a Antiga enquanto supre o que faltara a esta.

“Em verdade, Eu vos digo: antes que o Céu e a Terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra”.

   Os adeptos da chamada “moral de situação” defendem a mutabilidade dos princípios éticos em função do contexto no qual são eles aplicados. Segundo essa filosofia, se os costumes evoluem ao longo dos tempos, o mesmo deve ocorrer com as normas morais. Ou então, mesmo admitindo serem elas universais e perenes, deve-se evitar sua aplicação de forma absoluta nas situações concretas, reduzindo seu valor ao de meras orientações a serem ponderadas em função das circunstâncias do momento.

   Ora, a Lei sintetizada nos preceitos do Decálogo é absoluta e permanente, conforme ensina o Catecismo da Igreja Católica: “Visto que exprimem os deveres fundamentais do homem para com Deus e para com o próximo, os Dez Mandamentos revelam, em seu conteúdo primordial, obrigações graves. São essencialmente imutáveis, e sua obrigação vale sempre e em toda parte. Ninguém pode dispensar-se deles”. Por conseguinte, aquilo que era pecado quando Adão e Eva saíram do Paraíso, sê-lo-á também até o último dia, quando for morto o Anticristo e vier o fim do mundo.

“Portanto, quem desobedecer a um só destes Mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será considerado o menor no Reino dos Céus. Porém, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino dos Céus”.

   Ora, pior que desobedecer aos preceitos da Lei divina é criar ou propagar uma doutrina que convide a transgredi-los. Quem assim procede perde, sem dúvida, a graça de Deus e, caso não se emendar, “será considerado mínimo no momento do Juízo; ou seja, será reprovado, será o último. E o último cairá inexoravelmente no inferno”.

“Porque Eu vos digo: Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”.

   Os escribas e fariseus conheciam a Lei em sua perfeição e sabiam pesar cada ato em função dela. sua justiça fundava-se nas exterioridades. “Quanto ao repouso sabático, haviam eles multiplicado as interdições, entrando nos mais ínfimos detalhes. Sobre a questão das impurezas, deram livre curso à imaginação e acrescentaram à legislação mosaica as mais minuciosas prescrições”.

   Jesus nos adverte aqui ser indispensável, para entrar no Reino dos Céus, praticar uma virtude “maior” que a dos fariseus e mestres da Lei. Ou seja, não se prender às exterioridades, nem fazer enganosas racionalizações, mas cumprir de fato em sua integridade, amorosamente, os Dez Mandamentos.

“Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal’. Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo; quem disser ao seu irmão: ‘patife!’ será condenado pelo tribunal; quem chamar o irmão de ‘tolo’ será condenado ao fogo do inferno. Portanto, quando tu estiveres levando a tua oferta para o altar, e aí te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta aí diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão. Só então vai apresentar a tua oferta”.

   Os fariseus consideravam o homicídio um pecado gravíssimo, mas não reputavam ser falta moral encolerizar-se com o irmão, ou dizer-lhe toda espécie de desaforos.

   Com sua palavra e exemplo, ensinou Jesus que na Nova Aliança o relacionamento entre os homens deve, pelo contrário, pautar-se pelo respeito, consideração e estima, de forma a não dar ocasião a qualquer queixa recíproca.

“Procura reconciliarte com teu adversário, enquanto caminha contigo para o tribunal. Senão o adversário te entregará ao juiz, o juiz te entregará ao oficial de justiça, e tu serás jogado na prisão. Em verdade Eu te digo: dali não sairás, enquanto não pagares o último centavo”.

   O “adversário” de que fala Nosso Senhor neste versículo simboliza, sob certo prisma, Ele mesmo: o Bem substancial do qual nos tornamos inimigos ao pecar. O mais necessário e urgente, portanto, é procurar primeiro nos reconciliar com Ele, reconhecendo as nossas faltas, pedindo perdão por elas e fazendo firme propósito de doravante não nos desviarmos das retas vias do Redentor. Pois, cedo ou tarde, terminará nossa peregrinação terrena e compareceremos diante do Supremo Juiz, que pronunciará uma sentença justíssima e inapelável. Se nesse dia nosso Divino Adversário ainda tiver algo a declarar contra nós, a dívida será saldada, na melhor das hipóteses, no fogo do Purgatório, do qual não se sai sem pagar até o último centavo.

“Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração. Se o teu olho direito é para ti ocasião de pecado, arranca-o e joga-o para longe de ti! De fato, é melhor perder um de teus membros, do que todo o teu corpo ser jogado no inferno. Se a tua mão direita é para ti ocasião de pecado, corta-a e joga-a para longe de ti! De fato, é melhor perder um dos teus membros, do que todo o teu corpo ir para o inferno”.

   “Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração”: refere-Se aqui Nosso Senhor ao Nono Mandamento do Decálogo, o qual condena também o pecado interior: “Não cobiçarás a mulher do teu próximo” (Dt 5, 21).

  Logo a seguir, o Divino Mestre frisa a radicalidade com que devem ser praticados os Mandamentos, exortando-nos a levar até os últimos extremos o princípio da fuga das ocasiões de pecado. “Vigiai e orai para que não entreis em tentação” (Mt 26, 41), dirá Ele no Horto das Oliveiras. A oração é indispensável, mas não suficiente: é também necessário vigiar e afastar- se completamente daquilo que conduz ao pecado, sobretudo em matéria de castidade.

“Foi dito também: ‘Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de divórcio’. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por motivo de união irregular, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada comete adultério”.

   Moisés estabeleceu no Deuteronômio que “se um homem, tendo escolhido uma mulher, casar-se com ela, e vier a odiá-la por descobrir nela qualquer coisa inconveniente, escreverá uma letra de divórcio, lha entregará na mão e a despedirá de sua casa” (24, 1). Ora, as interpretações laxistas dessa passagem bíblica deram margem a escandalosos abusos, a ponto de ser o divórcio, segundo o Cardeal Gomá, “um mal gravíssimo do povo judeu, no tempo de Jesus”.

   Com efeito, explica Fillion: “As palavras ‘coisa inconveniente’ utilizadas pelo Deuteronômio eram de si vagas. Mas tinham recebido de Hilel e dos de sua escola uma interpretação escandalosa, que abria de par em par as portas para a paixão. Admitiam que a mulher, mesmo fidelíssima, podia ser despedida por qualquer motivo ou, digamos melhor, por qualquer frívolo pretexto. Um prato mal preparado, a vista de uma mulher mais formosa — atreviam-se a dizer os rabinos — eram razão para o divórcio”.

   Acrescia-se a isto o fato de o divórcio não ser conforme à lei natural. Como mais adiante afirmará o próprio Nosso Senhor, tratava-se de uma concessão temporária feita por Moisés devido à dureza de coração dos hebreus, “mas no começo não foi assim” (Mt 19, 8).

   Comenta a este propósito São Cromácio de Aquileia: “Com razão, nosso Senhor e Salvador, eliminada aquela permissão, restaura agora os preceitos de sua antiga constituição. Ordena, pois, conservar como lei indissolúvel a união do matrimônio casto, mostrando que a lei conjugal estava instituída originariamente por Ele”.

“Vós ouvistes também o que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso’, mas ‘cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor’. Eu, porém, vos digo: Não jureis de modo algum: nem pelo Céu, porque é o trono de Deus;  nem pela Terra, porque é o suporte onde apoia os seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do Grande Rei. Não jures tampouco pela tua cabeça, porque tu não podes tornar branco ou preto um só fio de cabelo”. 

  No tempo de Jesus, o abuso de jurar a qualquer propósito alcançara um grau inacreditável, e isso O levou a condenar explicitamente, neste Sermão da Montanha, todo tipo de juramento.

   Ocorria que, levados pelo orgulho, julgaram os fariseus haver maior honra e mérito em “fazer todas as coisas por Deus, obrigando-se por juramento”; e do preceito “não tomarás o nome de Deus em vão” deduziram, por uma interpretação forçada: “logo, tomarás o nome de Deus sempre que seja como garantia de algo que não seja falso”.

   Entre os cristãos, pelo contrário, devem reinar a sinceridade e a confiança, fruto da retidão de almas habitualmente em estado de graça, conforme ensina Santo Hilário de Poitiers: “A fé elimina-o costume frequente de jurar. Fundamenta na verdade a atividade de nossa vida e, rechaçando a inclinação para mentir, prescreve a lealdade tanto no falar como no ouvir… Portanto, quem vive na simplicidade da fé não precisa recorrer a juramentos”

“Seja o vosso ‘sim’: ‘Sim’, e o vosso ‘não’: ‘Não’. Tudo o que for além disso vem do maligno”.

   A isso nos convida o Papa João Paulo II: “Aprendei a pensar, a falar e atuar segundo os princípios da simplicidade e da clareza evangélica: ‘Sim, sim; não, não’. Aprendei a chamar de branco ao branco, e preto ao preto — mal ao mal, e bem ao bem. Aprendei a chamar pecado ao pecado, e a não lhe chamar libertação e progresso, ainda que toda a moda e a propaganda fossem contrárias”.

   A leitura do Evangelho deste domingo nos reporta a um  dos problemas mais graves do mundo moderno: a terrível perda do senso moral que assola as almas de tantos dos nossos contemporâneos.

   Com efeito, afirma Bento XVI, “vivemos num contexto cultural marcado pela mentalidade hedonista e relativista, que propende para eliminar Deus do horizonte da vida, não favorece a aquisição de um quadro claro de valores de referência e não ajuda a discernir o bem do mal e a maturar um justo sentido do pecado”.

   Aproveitemos esta Liturgia do 6º Domingo o Tempo Comum para analisarmos nossa consciência à procura de alguma racionalização que nos esteja conduzindo a concessões morais, em nossa vida profissional ou particular.

Obra consultada:  DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol VII, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013

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